Ela não esperou o pior. Deu um basta quando, em um ataque de ciúmes, ele disparou:
“Se encontrar você com outro homem, eu te mato.”
Aquela ameaça era um alerta definitivo. Não havia mais o que esperar. Sobretudo depois que a agressão passou das palavras à ação. Em meio a uma outra discussão, ele tomou o iPhone 5 dela e o partiu ao meio. Destruiu o aparelho e tentou arremessá-lo pela janela do apartamento do edifício de classe média alta, no coração de um dos bairros nobres do Recife. Era 1º de novembro do ano passado. Véspera do Dia de Finados. Ela só esperou passar o feriado. No dia seguinte, estava na Delegacia da Mulher denunciando o marido. Contrariando as estatísticas, o comportamento padrão e o medo de se expor, Deborah Hulak, 47 anos, mãe de duas filhas (a mais nova, de 5 anos, fruto do casamento com o marido denunciado), rompeu o silêncio, antes que o pior pudesse acontecer. Ao aceitar conversar abertamente sobre o que enfrentou, a servidora pública federal revela não só uma atitude de coragem. Mas uma negativa à vitimização de sua condição de mulher. “Não sou e não quero ser vítima. A violência dele até me colocou nessa posição, mas sou autora da minha história. Não tenho por que me esconder.”
Não é uma decisão fácil. Muito menos comum. Sobretudo na classe social que Deborah faz parte. Em geral, a violência contra a mulher e, consequentemente, a exposição dessa violência, tende a ser associada à condição de pobreza. A própria iniciativa de procurar uma delegacia para denunciar a agressão costuma ser evitada pelas mulheres que possuem uma condição econômica mais favorável. Deborah diz que, embora esse comportamento seja frequente, ele lhe causa estranheza. “Sinceramente, eu acho que é mais por uma questão de vaidade. Dessa mulher estar numa condição social onde o julgamento do outro parece ser mais importante. De não querer se expor para os vizinhos, no âmbito social, no trabalho. Você quer mostrar que está tudo sempre muito bem.” Ao agir dessa forma, no entanto, Deborah diz que a mulher não percebe que alimenta a violência contra ela mesma. “Esse aprisionamento só dá mais poder ao agressor. Se ela não toma uma atitude para barrar esse tipo de ação, então, sem querer, fomenta isso.”
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A preocupação com a segurança dela e, principalmente, das duas filhas, foi a principal razão que a fez denunciar o marido, antes que ele pudesse chegar ao ponto de agredi-la fisicamente. “Foi assustador. Porque a gente nunca espera que a relação possa evoluir tão negativamente. Mas quando ele me ameaçou e destruiu meu celular, eu tive certeza que, se não tomasse uma atitude, aquilo ia fugir ao controle. E, mais adiante, poderia ser tarde demais”, conta. A socióloga Ana Paula Portella, pesquisadora da temática da violência contra a mulher, diz que essa reação ainda é uma exceção entre as vítimas de agressores. “Em qualquer classe social, a mulher tende a ficar na relação, a perdoar. Ela termina se submetendo a uma sequência de violência psicológica, de ameaças, até que se chegue ao extremo da agressão física. Muitas vezes ela até suporta essa agressão, antes de conseguir se insurgir contra ela”, observa.
Sobretudo entre as mulheres da classe média, a socióloga diz que a chegada das redes sociais teve um poder transformador no enfrentamento da violência de gênero. Por conectar as pessoas, ela ajuda a acabar com a sensação de isolamento. “A mulher poderia se sentir sozinha, desprotegida. Ao denunciar um estupro, um espancamento, por meio das redes sociais, ela consegue se conectar com profissionais que podem ajudá-la e o resultado é o fortalecimento dessa rede de proteção.” Outra novidade positiva, especialmente entre as mulheres mais jovens, ressaltada pela pesquisadora, é a percepção do poder político que a denúncia e a exposição da violência são capazes de gerar.
“Elas começaram a perceber a eficácia política do gesto de denunciar. Dar visibilidade ao fato é uma forma de construir um empoderamento coletivo. A denúncia pública deixa de ser vista como uma reação isolada de uma mulher agredida, mas como o fortalecimento de outras tantas que podem estar passando pela mesma situação”, avalia a socióloga. A ideia é: ao expor sua dor pessoal, ela está colaborando para quebrar o silêncio de outras mulheres.
A percepção de Ana Paula Portella se traduz perfeitamente nas palavras de Deborah. Quando questionada por que decidiu contar sua história, a servidora diz que enxergou em seu relato a chance de ajudar outras mulheres também a dizerem não à violência. “Essa minha exposição pode vir a beneficiá-las. Que elas tenham coragem de quebrar esse ciclo vicioso que é o do falso amor. Desse amor que vem com violência, limitação de sua liberdade. A mulher não deve deixar ninguém interferir negativamente em sua vida. Se for necessário prestar uma queixa na polícia, se esse for o caminho, faça isso. E se livre da situação de medo, ameaça e infelicidade.”