Sem água e sem banheiro

Entregues à esquistossomose

Estudo aponta áreas críticas da doença e o precário saneamento básico

Veronica Almeida
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Veronica Almeida
Publicado em 20/04/2013 às 17:29
Foto: Bobby Fabisak/JC Imagem
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O Programa de Enfrentamento das Doenças Negligenciadas da Secretaria Estadual de Saúde – considerado uma das experiências bem-sucedidas do SUS no País – está desvendando realidade que não condiz com os tempos atuais. Ao identificar áreas com maior transmissão de esquistossomose, doença na qual Pernambuco é campeão nacional em mortes, descobriu comunidades urbanas e rurais, principalmente da Zona da Mata, que vivem em condição precária em matéria de saneamento. O JC  visitou sete dos dez municípios em pior situação e encontrou pessoas que nunca usaram vaso sanitário, além de só contarem com o rio ou cacimbas para banho, lavagem de prato e roupa. Há histórias de adoecimento recente e repetido. De hoje a terça, Veronica Almeida (texto) e Bobby Fabisak (fotos) descrevem o injustificável desrespeito a direitos básicos.

A jovem Joselma Maria da Silva nasceu nos anos 90, no auge da transição epidemiológica, em que as doenças crônicas – ditas do desenvolvimento – passavam a prevalecer sobre as parasitárias. Nessa mesma década, de redemocratização, a moeda brasileira se fortalecia e a economia ganhava inovações com o crescimento tecnológico. Aos 23 anos agora, diante de uma economia mais desenvolvida em Pernambuco e no resto do Nordeste, ela ainda vive como na infância, usando água de cacimba para beber. Lava as louças e as roupas num riachinho perto de casa. “Fazemos tudo no rio”, diz. E do rio ela não só pega água. Foi lá, no contato com a água contaminada por esgoto doméstico, que Joselma e dois dos três filhos adquiriram o verme da esquistossomose.

Já tomou medicamento três vezes para curar repetidas infestações pelo parasita que aleija e mata por cirrose, hipertensão pulmonar ou hemorragia digestiva. A localidade onde Joselma vive, Cobras, em São Benedito do Sul, a 169 quilômetros do Recife, é um lugarejo escondido entre canaviais, onde segundo o programa Sanar da Secretaria Estadual de Saúde, 95% dos 112 moradores vivem sem água encanada. Os 5% restantes até dispõem de canos e torneiras em casa, mas o abastecimento é de fonte duvidosa, de poços artesanais e cacimbas sem tratamento. Não por acaso, a comunidade vive uma “hiperendemia de esquistossomose”. Nada menos que 70% das pessoas estão infestados pelo Schistosoma mansoni. É o maior índice em todo o Estado.

Cobras faz parte de um conjunto de 119 localidades selecionadas pelo Sanar em 30 municípios da Zona da Mata, do Agreste e do Grande Recife, considerados endêmicos, de transmissão constante da doença e com elevado número de exames positivos para o xistossomo e outros vermes. O Dossiê das Condições Sanitárias das Áreas Hiperendêmicas para Esquistossomose e Geo-helmintíases, produzido pelo programa da Secretaria Estadual de Saúde, pretende servir de guia para outras áreas do Estado e ajudar prefeituras na busca de soluções.

O documento identifica localidades com maior infestação (em número de pessoas e quantidades de ovos presentes nas fezes), detalha as condições de abastecimento d’água e esgotamento sanitário, além de apontar os principais motivos do uso de coleções hídricas, como rios, cacimbas e poços artesanais pela população. Revela que 135.626 pernambucanos ainda vivem no passado em matéria de saneamento, confirmando a estreita relação das verminoses com a perversa falta de saneamento básico e ambiental.

“Além de cruzar informações fornecidas pelos municípios quanto ao número de infestados, equipes do Sanar visitaram as áreas, identificando como era o uso de coleções hídricas contaminadas”, explica José Alexandre Menezes, coordenador-geral do programa. Essa visitação ocorreu entre abril de 2012 e fevereiro último. O relatório final deve ser apresentado ainda neste primeiro semestre.

As cinco localidades com maior proporção de pessoas infestadas pelos vermes estão em São Benedito do Sul, Escada (Mata Sul), Ipojuca (Região Metropolitana) e Vicência (Mata Norte). Aliança, Vicência, Timbaúba (Mata Norte), Bom Conselho (Agreste) e Ipojuca também são as cidades com o maior número de comunidades atingidas.

Nas 119 localidades estudadas pelo Sanar em 30 municípios, menos de 1% das residências tinha dejetos coletados pela rede pública. E quase metade da população exposta à esquistossomose nessas áreas, cerca de 55 mil pessoas, não dispõe de vaso sanitário em casa. Apenas 2.700 moradores, 2% de um universo de 135,6 mil, têm banheiro ligado à fossa séptica.

As duas espécies de caramujo transmissor da esquistossomose em Pernambuco – Biomphalaria glabrata e B. straminea – sempre viveram em áreas de água doce. Faz parte da natureza delas abrigar riacho, rios, açudes, charcos.

Por isso, o problema mesmo são as fezes humanas infectadas que chegam até esses locais por falta de banheiro, fossas sépticas e rede coletora e de tratamento de esgoto. Quem pega o verme acaba propagando o parasita para a família ou os vizinhos. O doente elimina os ovos dos vermes, que se transformam em larvas (cercárias) e infectam os caramujos. Na presença da luz, elas deixam os moluscos e ficam novamente livres na água ou alagados, podendo penetrar na pele dos humanos.

Foto: Bobby Fabisak/JC Imagem
No Bálsamo da Linha, em Jaqueira, Edvânia e os filhos são vítimas da esquistossomose - Foto: Bobby Fabisak/JC Imagem
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Aleandra Soares, 25 anos, moradora do assentamento Bom Destino, em São Benedito do Sul, tem o verme - Foto: Bobby Fabisak/JC Imagem
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Nadir dos Santos, 60 anos, do Sítio Frexeira, em Bom Conselho, não sabe o que é banheiro em casa - Foto: Bobby Fabisak/JC Imagem
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Joselma Silva e os filhos vivem em Cobras, São Benedito do Sul, sem água encanada - Foto: Bobby Fabisak/JC Imagem
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Chafariz em Upatininga, Aliança, funciona em horário reduzido por causa da falta d'água - Foto: Bobby Fabisak/JC Imagem
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Maria Aparecida e a família se expõem ao verme no Rio Capibaribe, em Timbaúba - Foto: Bobby Fabisak/JC Imagem
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Maria José Peixoto só usa água de riacho em Nova Cintra, Timbaúba - Foto: Bobby Fabisak/JC Imagem
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No Sítio Carambola, em Escada, Neuza Pereira e o filho Idelson usam água de uma cacimba - Foto: Bobby Fabisak/JC Imagem

Descubra mais informações sobre o estudo do Sanar lendo a edição impressa do JC deste domingo.

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