Marco Nanini está especialmente contente em voltar ao Recife onde nasceu - e de onde saiu há mais de 40 anos para iniciar uma carreira que o transformaria num dos mais consistentes atores do País. Nos dias 8 e 9 de fevereiro, apresenta seu novo espetáculo no Santa Isabel, uma casa que adora e onde não trabalhava “desde os anos 1960”. Em cartaz, A arte e a maneira de abordar seu chefe para pedir aumento, um texto cilíndrico, de estrutura nada linear, originalmente publicado em livro em 1968 por Georges Perec (1936-1982), nome de destaque da literatura francesa contemporânea.
Com direção e adaptação do também pernambucano Guel Arraes, o texto é um labiríntico sistema de operações combinatórias para que um empregado, frustrado, encontre o melhor momento de ter êxito na hora de pedir aumento ao chefe. “É triste, ele não consegue. A peça fala desse mundo em que as corporações sufocam o indivíduo"” diz Nanini, também feliz por duas outras razões.
Com o patrocínio de um edital, vai ter o espetáculo em cartaz a preços populares (R$ 20, a inteira) e, no Recife, poder chupar as pitombas de que tanto gosta. “Sou doido por pitombas, mando importar lá pro Rio”, diz ele, nessa entrevista a Bruno Albertim.
JC - Você já conhecia Georges Perec, a literatura dele?
MARCO NANINI – Eu já conhecia Vida, modo de usar, que é a obra mais famosa dele. Mas o Guel (Arraes), uns anos atrás, me apresentou esse texto A arte e a maneira de abordar seu chefe para pedir aumento. Eu fiquei muito interessado, esse texto era basicamente um exercício de ator e direção. Eu e meu sócio, Fernando Libonati, abrimos o Instituto Galpão Gamboa, onde temos obras ocasionais e uma sala de ensaio que virou um pequeno teatro. A gente não tinha muita esperança de ganhar um edital para o espetáculo, era um exercício. Mas já vai fazer dois anos que estamos em cartaz. Vamos encerrar essa primeira fase fazendo duas apresentações no Recife. Para meu prazer, vai ser no Santa Isabel, que é um lugar que eu não trabalho desde os anos 1960!
JC – Você parece gostar especialmente de longas temporadas. Quando tempo de carreira terá esse espetáculo?
NANINI – Eu tive duas coincidências, são 14 anos de A grande família e foram 11 anos com Irma Vap. Sempre que um espetáculo se comunica muito bem, ele vai adiante. Mas não pretendo fazer uma temporada tão longa dessa peça, para poder logo fazer outros textos. Essa peça é um texto repetitivo, mas de grande beleza. Achamos que não teria um grande impacto, mas tem. Graças a esse edital (de circulação, da BR Distribuidora), estamos com a oportunidade de poder circular e, até como uma das contrapartidas, praticar um ingresso barato.
JC – Ainda há muitas críticas, no Brasil, aos preços altos cobrados pelas peças, várias delas subvencionadas com dinheiro público...
NANINI – Antes, você tinha que ter um padrão muito alto para ir ao teatro. Depois, achou-se que o teatro é algo para uma elite culta. De uns anos para cá, a força de comunicação do teatro brasileiro voltou a existir. No centro de atividades que mantemos na Gamboa (região central do Rio de Janeiro), temos um público entusiasmado que não ia ao teatro. As pessoas entram e saem dos projetos sem muita clareza. A meia-entrada liquidou com quem era produtor de verdade. Em compensação, algumas pessoas pagam menos. Mas é preciso ter políticas de acesso mais amplo. A BR e o Sesc de São Paulo têm uma política muito forte.
JC – Essa é sua terceira montagem de teatro com Guel Arraes...
NANINI – A gente trabalha junto há 25 anos. Eu fiz uma participação, nos anos 80, em Armação Pirata. Fiz também, com ele, a TV Pirata que, para a época, era bem revolucionário. Depois, ele fez uma série chamada Brasil Especial, em que também participei. Eram contos, romances adaptados para a TV. Eu fiz o primeiro e nos demos muito bem. Temos afinidades. Ele é muito disciplinado, e eu também. Intelectualmente, ele é muito inspirado. Eu descobri a comédia através do Molière. Quando passei a ser um profissional, sempre quis fazer um Molière mais subversivo, nem tão convencional. Ele misturou O burguês fidalgo As precisosas ridículas para fazermos o espetáculo.
JC – Verdade que sempre que vem ao Recife vai almoçar no Leite por questões afetivas?
NANINI – Meu pai trabalhou no Leite e no Grande Hotel do Recife, que já não existe mais. Foi garçom. Sempre que vou ao Recife, vou ao Leite. Gosto muito do restaurante, tenho muitas lembranças do Recife, apesar de ter saído cedo da cidade. Uma das coisas que eu sinto falta são as pitombas do Recife. Eu importo elas (risos) pro Rio. Adoro.
JC – Algum novo projeto para o teatro depois desta peça?
NANINI - Vou fazer Beija minha lápide, com direção de Filipe Hirsch. É sobre Oscar Wilde, um livro de Peter Asford. É um testamento de Oscar Wilde, o autor é um historiador que criou uma espécie de diário do Oscar Wilde nos últimos dias. Filipe vai desenvolver uma dramaturgia em cima disso. Vem do fato de ele ter visto, no cemitério Pèrre Lachaise, vários jovens beijando a lápide de Oscar Wilde. Ele foi muito cultuado, agora fecharam o túmulo com acrílico. Não sei se vai ser o Oscar em cena ou um punhado de sentimentos do Oscar. Não é biográfico, não vou procurar imitá-lo. Me interessa os problemas dele, a prisão dele, sua decadência, o sofrimento por causa da homossexualidade dele.
JC – Por falar em homossexualidade, jornais diários, site e revistas de amenidades repercutiram muito uma declaração sua, ano passado, à revista Bravo, dizendo de maneira prosaica que teve ou costuma ter alguns namorados. Você esperava que uma declaração como essa chamasse tanta atenção nos dias que correm?
NANINI – Impressionantemente, ainda é algo que chama muita atenção. Essa curiosidade ainda chama muita atenção. Era uma revista de cultura, eu resolvi falar. Mas minha declaração se fecha em si mesma. Não tenho mais nada a dizer sobre aquilo.
JC – Dos novos nomes do teatro brasileiro, você tem trabalhado, por exemplo, com o Filipe Hirsch. Há algum diretor novo com quem você teria algum interesse especial em trabalhar?
NANINI – Tem alguns diretores em quem eu fico de olho, mas não tenho tempo. Aderbal Freire Filho, Daniel Reis, o dos Atores de Laura, Jô Bilac, que é um autor novo. Tem muita gente nova que me interessa. A gente apresenta muita coisa deles. Toda semana, a gente tem um espetáculo (no Instituto Gamboa). Os grupos do Recife também: quero conhecer o trabalho do Angu de Teatro e do Magiluth, ouvi falar e sei que são presentes, atuantes.
JC – Faz tempo que não te vemos no cinema...
NANINI – Tenho recusado alguns roteiros por falta de tempo físico. O cinema te liquida, quando você entra nessa viagem, é muito sério. Tem que ter muita saúde física.
JC – Tem visto os últimos filmes desse cinema pernambucano que vem sendo tão premiado?
NANINI – Sei que o cinema de Pernambuco hoje é uma explosão como foi a do manguebeat. Mas não tenho visto muita coisa... Eu brinco que a última coisa que eu vi é o filme Sunset Boulevard (risos!).
JC – Você já disse que o desafio é apresentar um texto sem narrativa fatídica, com falas que são basicamente as mesmas, basicamente um caminho pelas variações de humor do personagem. Como esse texto pode se comunicar tão bem?
NANINI – Ele não é um texto fácil, é difícil. O autor tem um livro que escreveu sem a letra. E tem outro que usa justamente a letra E com ênfase. Usa a literatura como alavanca de criação dramatúrgica. Nesse texto que trabalhamos, ele partiu de um organograma de computador dos anos 70, um texto que tem uma tradução muito bonita do Bernardo Carvalho, que sempre pára na resposta “sim” ou “não”. Você está sempre escolhendo entre uma coisa e outra, numa forma literária muito requintada, onde mudam pequenas palavras. Isso, assim, é uma dificuldade, um exercício de estilo, o Guel pegou, então, uma situação e repete em várias situações. Para dar mais vida, nós pegamos sentimentos nos diversos trechos do livro, falamos de um funcionário que vai pedir um aumento. Mas ele não é o protagonista, o protagonista é o narrador. É muito prazeroso fazer isso. Não chega a ser nonsense. É permeado por um humor com muito boa dosagem. Você não cai da cadeira de rir. Mas quem é da classe média compreende bem esse tipo de problema. É triste, o funcionário não consegue nunca o aumento. É uma crítica aos escapismos das coisas, ao corporativismo, em detrimento do ser humano. Ao status quo em que a gente vive.