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Rosamaria Murtinho põe Doroteia, de Nelson Rodrigues, de pé

Com elenco que conta com Letícia Spiller no papel-título, espetáculo está em cartaz no Teatro RioMar

Bruno Albertim
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Bruno Albertim
Publicado em 20/08/2016 às 2:09
Carol Beiriz / Divulgação
Com elenco que conta com Letícia Spiller no papel-título, espetáculo está em cartaz no Teatro RioMar - FOTO: Carol Beiriz / Divulgação
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Rosamaria Murtinho vai chegar hoje ao teatro duas horas antes de a sessão começar. Como de costume, deve ficar no camarim, concentrada. Talvez passando a vista no texto. Como sempre, deitada. Tem sido assim desde o começo de fevereiro quando, quatro dias antes da estreia, ela teve um nem tão pequeno acidente em casa. “Levantei de noite, bati no rack da TV do quarto e levei uma queda. Quebrei duas costelas”, ela conta, por telefone, de sua casa, no Rio, antes de embarcar pro Recife. “O médico queria que eu suspendesse a estreia. Imagina se eu podia! Como não quis me imobilizar, combinei com ele de ficar a maior parte possível do tempo deitada”.


O esforço (físico) e a força (cênica) de Rosamaria podem ser vistos hoje e amanhã no Teatro RioMar. Ao lado de um elenco que coleciona tantos elogios quanto ela, com Letícia Spiller no papel-título, a atriz encampa a pequena temporada pernambucana de Doroteia, a pérola do teatro desagradável de Nelson Rodrigues que Rosamaria vem defendendo com a força que as coisas parecem ter quando precisam acontecer. De idade suposta, não confirmada - “Os repórteres que apurem...”, brinca - a atriz tem em Doroteia um marco. A encenação pontua seus sessenta anos de carreira. E também um encontro.


“Não sei dizer porque não aconteceu, mas simplesmente não aconteceu de eu ter feito um texto de Nelson Rodrigues antes”, diz a atriz que assistiu ao moderno teatro brasileiro surgir e se estruturar com Ziembysky, Cacilda Becker e o próprio Nelson - todos, em algum momento, seus contemporâneos.


Depois de já ter passado pela dramaturgia de autores maiúsculos como Tennessee Williams (“A Rosa Tatuada”) e Anton Tchecov (“A Gaivota”), Rosa faz finalmente seu primeiro Nelson. “Engraçado é que essa peça foi escrita para a Eleonor Bruno, a mãe da Nicete Bruno. O Nelson era apaixonado por ela. E hoje, depois de tanto tempo, eu tô fazendo. E não por outra razão: a peça é uma obra-prima”.


O encontro tardio com Nelson veio meio que por acaso. Ao perceber a proximidade da data redonda, seu metabolismo mental acelerou-se. “Seria cômodo pedir um monólogo a um grande autor para celebrar minha carreira, mas eu precisava sair da zona de conforto”. Depois que o filho J.P. Mendonça lhe apresentou ao diretor curitibano Jorge Farjalla, ela encantou-se com a energia criativa do rapaz e lhe fez o pedido: “Quero que você me desconstrua!”.


Por desconstruir-se, Rosamaria entendia suspender a pequena população de mulheres grã-finas nas tramas esquemáticas das novelas brasileiras que vinha encarnando nas últimas décadas. “Precisava fazer um personagem fora desse universo de mulheres ricas da TV”. Farjalla, então, lhe apresentou o texto de Doroteia. “Eu lhe disse que não poderia fazer, em função da minha idade, o papel-título. Doroteia é muito mais jovem do que eu”. Com a leitura do texto, no entanto, ela descobriu o que o título não revelava. A protagonista da trama não é a jovem protistuta abrigada por suas tias, mas a dona Flávia responsável por impedir que as mulheres da família durmam para não correr o risco de sonhar com homens, corrompendo a pureza da carne.


Pela primeira vez, contrariando as indicações do próprio texto, a matriarca da família de mulheres interditadas ao sexo não é interpertrada por um ator homem. “Ela é uma uma mulher feia, frustrada e infeliz, que dorme no chão porque acredita que a cama é um convite a sonhos da carne. Faz um contraponto à Dorotéia, ex-prostituta, linda, que busca abrigo na casa das primas após a morte do seu filho. Não há nada de elegância”, diz ela, que abriu mão da vaidade pessoal pelo papel. “Parei de pintar o cabelo por completo”.


Escrita em 1949, “Doroteia” fecha o ciclo do teatro “desagradável” de Nelson Rodrigues. No texto, a protagonista persegue a destruição da própria beleza para, equiparada à feiura das primas, ser aceita como uma protistuta arrependida depois da morte do filho. Como na tragédia, traz um destino inevitável embalado por uma mistura de sonho, pesadelo e desatino. “Não é um texto fácil, tem muito simbolismo, imagens que ele cria, que se a gente não amarrar, as pessoas não compreendem. Tem a dualidade da própria Doroteia. Num minuto, ela diz uma coisa, e no minuto seguinte, já diz outra. Nem sempre era fácil compreender a verdadeira intenção da personagem. Através da boca de seis mulheres, Nelson Rodrigues conseguiu colocar o cerne de nossa humanidade”, diz a atriz que, outra vez, se deitará no camarim de onde se levantará para colocar Doroteia, e Nelson, de pé.

Dorotéia. Sábado, às 21h, e domingo, às 19h. Teatro RioMar Recife. Informações: 4003-1212. Duração: 90 minutos. Ingressos: entre R$ 45 e R$ 120.

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