RESENHA

'Memórias de Um Cão' abre em grande estilo o 18º Festival Recife do Teatro Nacional

Montagem do Coletivo de Teatro Alfenim (PB) ressalta mais uma vez a minúcia do olhar de Machado de Assis sobre as relações sociais brasileiras

NATHÁLIA PEREIRA
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NATHÁLIA PEREIRA
Publicado em 21/11/2016 às 6:00
Coletivo Alfenim/Divulgação
Montagem do Coletivo de Teatro Alfenim (PB) ressalta mais uma vez a minúcia do olhar de Machado de Assis sobre as relações sociais brasileiras - FOTO: Coletivo Alfenim/Divulgação
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A abertura do 18º Festival Recife do Teatro Nacional, na noite do último sábado (19), levou ao palco do Teatro de Santa Isabel uma mostra do bom papel questionador que as artes cênicas podem assumir em momentos como o da atual crise econômica, política e social que aflige o País. Homenageado desta edição, o grupo de teatro de bonecos Mamulengo Só-Riso foi representado pelo ator e um dos fundadores Fernando Augusto Gonçalves Santos, que fez do momento de agradecimento um espaço para mobilizar atores, dramaturgos, diretores e demais membros do teatro local a se posicionarem contra as medidas governamentais apontadas por ele como absurdas – a PEC 55  e a instabilidade do Ministério da Cultura na atual presidência da república, por exemplo.

Não por menos, o espetáculo escolhido como abre alas da programação foi Memórias de Um Cão, do paraibano Coletivo de Teatro Alfenim. Em cena, sete atores e dois músicos, executando trilha ao som de violoncelo, percussão e piano, partem da obra de Machado de Assis para ironizar o tão enraizado costume da cultura brasileira de ambicionar progresso econômico, ignorando as possibilidades de evoluir socialmente.

A principal inspiração para a montagem foi Quincas Borba, romance escrito por Machado no fim do século 19, já na fase realista de sua criação, período no qual é ambientado o espetáculo. Na cena inicial há também um flerte com Memórias Póstumas de Brás Cubas, publicação anterior, na qual aparece pela primeira vez o personagem Joaquim Borba dos Santos, o Quincas. 

Mas o mote principal é mesmo a segunda obra da trilogia realista do Bruxo do Cosme Velho: já idoso e delirante, o filósofo Quincas parte em direção à Corte, deixando seu cão, que batizou com seu nome - numa tentativa de se manter vivo na figura do bicho - sob os cuidados de Rubião, ex-professor e discípulo de seus ensinamentos. Após a morte do amo, Rubião se torna herdeiro integral de toda a fortuna, partindo dessa vez ele ao Rio de Janeiro, onde é seduzido pelas efêmeras vantagens do capitalismo. Lá conhece Cristiano, típico exemplar do sistema que o encantou, e sua esposa, Sofia, pela qual se apaixona desde o primeiro encontro. Da amizade com o casal deriva toda a derrocada que se torna a vida de Rubião.

Cada fase de armadilhas em que Rubião cai é anunciada com base nos quatro princípios do Humanitismo, a filosofia criada por Quincas Borba para explicar os pormenores da relação entre os homens, tendo como premissa a afirmação de que uns acabam sempre se transformando em objetos das ambições dos outros, numa espécie de guerra de onde sairá o mais forte: “Ao vencedor, as batatas!”. O desenrolar da trama, como pré-anunciado na primeira cena, é narrada em primeira pessoa, não por figura humana, mas pelo Cão do título, o cachorro de Quincas, herdado por Rubião, que acompanha cada passo do novo dono, definhando junto a ele para o destino final. 

CONTEMPORANEIDADE MACHADIANA

Memórias de Um Cão é fruto da intenção do Coletivo Alfenim de politizar a dramaturgia, indo na contramão do teatro intimista, para por luz sobre o jogo de poderes ainda entranhado na sociedade brasileira.  Na opção de adaptar para os palcos um clássico de um dos autores que melhor escancarou as entranhas do pensamento conservador nacional, a peça traz ao espectador no mínimo duas observações – mais uma confirmação da atualidade e minúcia da obra machadiana e, por consequência dessa primeira, a sugestão de que os fios das organizações sociais brasileiras permanecem presos ao conservadorismo e ao que de pior se extrai dele.

O Festival Recife do Teatro Nacional segue até o domingo (27/11) com espetáculos diários, distribuídos entre os Teatros Apolo, Barreto Júnior, Hermilo Borba Filho e Luiz Mendonça. Confira a programação completa e os valores dos ingressos clicando aqui.

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