SÃO PAULO – Há três anos, ela abandonou a plateia. Subitamente. Representante de uma espécie que vai rareando nas fronteiras nacionais, Maria Alice Vergueiro confirmava sua condição de uma das últimas grandes divas do teatro brasileiro com a premiada montagem de As Três Velhas quando, ao perceber que não conseguiria pronunciar uma só palavra do texto do chileno Alejandro Jodorowsky, deixou o palco. A dama indômita sucumbia ao Parkinson – “Dizem que não mexe com a memória, mexe sim”. Agora, aquela que se acostumou, sem soberba ou embriaguez, ao título de dama do underground brasileiro, resolveu não apenas encarar seus demônios. Em vez de se resguardar, morrer diante do público. Maria Alice morre várias noites no palco.
Com excertos de Beckett e Hilda Hilst, dois autores que lhe são caros para além das questões mais essencialmente dramatúrgicas ou cênicas, Maria Alice Vergueiro, 83 anos, magnetiza plateias pelo País com Why the Horse? Ode ao poder do “agora”, libelo pelo desejo de transformar o presente vivido em monumento pessoal de eternidade, a atriz encena, no espetáculo, seu próprio velório. “Não poderia fazer nada que não mexesse mais com a morte. A morte está no caminho. É muito forte mexer com a morte. Não posso esquecer que já comecei a fazer essa viagem”, diz a decana que, de Zé Celso Martinez Correia a Gerald Thomas, do Teatro do Ornitorrinco que ajudou a fundar com Cacá Rosset à sua companhia, o Grupo Pândega, vem escrevendo alguns dos capítulos mais corajosos do teatro no Brasil. Em As Três Velhas, para ficar no exemplo recente, ela faz uma centenária aristocrática e decadente, mãe de dois gêmeos de 88 anos. A concepção dos herdeiros se dera aos 12, durante um estupro.
Há alguns meses em cartaz numa sala no centro de São Paulo, Maria Alice avisa: quer também morrer no Recife. “É um desejo meu levar esta peça à cidade. Recife é uma cidade de uma grande energia, me encanta. Tem um dos melhores cinemas do País”, diz ela que, desde que encenou a história das marquesas sociologicamente surreais de Jodorowsky, na edição 2012 do festival Janeiro de Grandes Espetáculos, afinou mais sua relação com a cidade. “Além da cidade, gosto muito e respeito o trabalho das produtoras Paula (de Renor) e Carla (Valença)”, diz ela, sobre as profissionais que, ao lado do também ator Paulo de Castro, conduzem o festival internacional de artes cênicas realizado a cada começo de ano na capital pernambucana. “Apenas uma coisa me entristece muito. Essa violência toda de que escuto falar no Recife. É de fato muito triste”.
Artéria do teatro de boa prosa e vanguarda desde a segunda metade do século 20, Maria Alice Vergueiro se viu eleita também à musa da cultural digital no Brasil. Como a velhota de fumaça nas ventas do curta Tapa na Pantera, lançado no virtualmente longínquo ano de 2006, ela conduziu a migração da dramaturgia das mídias tradicionais para as plataformas eletrônicas. O vídeo foi um dos primeiros a atingir a marca de mais de um milhão de visualizações em poucos meses – numa época em que smartphone ainda não era parte do corpo humano. Ausente da grande mídia – Sassaricando, de Sílvio de Abreu, nos anos 80, foi, por opção deliberada, a única novela de que participou –, sua popularidade de musa galopava outra vez até que a vida, sempre ela, lhe começou a cobrar a fatura do diagnóstico de Parkinson, revelado há 14 anos. “Pensei em encerrar a carreira.”
Em vez de contra eles lutar, a vítima incorporou seus inimigos. “O Parkinson me fez observar mais os meus movimentos. No meio disso tudo, fiz ainda uma cirurgia que me colocou na UTI. Depois, ele ficou meu aliado. Passou a ser uma forma de eu me organizar cenicamente. Tem suas vertentes. Pode ser aliado, por exemplo, na medida em que pode me dar um problema de respiração, e eu o uso no canto. Seus movimentos podem ser usados plasticamente”, ela diz. A peça, aliás, pode ter começado quando Maria Alice estava ainda na UTI, tratando de infecções bacterianas numa prótese colocada no joelho. Em todas as visitas ao hospital, seu parceiro de teatro e de vida, o ator Luciano Chirolli, ouvia da amiga um relato de algum vizinho de leito morto entre as paredes pesadamente claras da unidade de terapia intensiva. “A morte estava, de fato, ao meu lado”, ela lembra.
Why the Horse? não é exatamente uma performance. Poderia ser melhor entendida como um happening: há um ponto de partida, mas não está exatamente desenhado o percurso até a chegada. A dramaturgia é fluida. Também porque não haveria a segurança da memória em respeito canino a um texto. “Sim, eu posso esquecer. Mas também vou ativando lembranças.”
Em cena, Maria Alice faz do Parkinson trêmulo em seu corpo amparado por uma cadeira de rodas uma espécie de butô pessoal – a expressão japonesa de teatro no pós-guerra em que há reverências evocativas aos mortos. Enquanto anuncia a chegada da própria morte, a atriz repassa a vida. Não necessariamente de forma verbal. Dança, movimenta-se lubricamente. Faz sexo sem transar. Encontra em seus pares de cena os pontos de apoio para a lógica precisa de seus delírios. Muitas vezes, cai. “Sim, caí mesmo em cena naquela noite em que você me assistiu”, ela conta. Atores do Teatro Pândego, Chirolli, Robson Catalunha e Carolina Splendore lhe passam o “ponto” no ouvido quando percebem que a atriz desconhece o próximo passo. “Não tem memória no trabalho. Isso é interessante, de repente eu me pego falando, cantando, quando eu caí, meus amigos acharam que eu tinha me ferido. Mas não tive nada, nem um arranhão. O Parkinson deixa a gente mais debilitada, e eu fiquei firme”.
Muito sutilmente, a missa pessoal de Maria Alice evoca os ritos de libertação fundamentais de sua trajetória. A morte do pai, talvez o principal deles. O próprio Jodorowsky, ao lhe abrir um tarô, diagnosticou a influência de um grande arquétipo masculino. “Descobri, depois, que ele não era um mito. E pude encontrar em mim aquela energia que via nele.” A expulsão da escola de arte dramática da USP, em 1974, quando, de bônus, ela recebeu salvo conduto para abandonar a moral estruturante da família quatrocentona paulistana na qual se fez mulher. “Minha família é de fazendeiros, eu tive um tio-avô que foi regente do Império de Dom Pedro II. Na escola, falavam de mim”, sorri.
Foi justamente uma peça em que atuava ao lado de Cacá Rosset seu passaporte. Ser currada em cena pelo ator, quando bradava a morte do teatro, foi demais para a vetusta Universidade de São Paulo. Dali, ela encamparia o que Rosset chamaria de o “descaralhamento” que, sem rede de pudores, a levaria ao título de dama do underground do Brasil. “Descaralhamento? Não, isso é uma invenção dele. Não sei o que ele quer dizer com isso. Não tenho censura para fazer as coisas. Deve ser isso”, sugere. “O universo agora não chama mais underground, mas eu acho que isso quer dizer ter uma certa coragem de ser o que você é. Ter coragem de encarar, mas me chamar de dama do underground é um pouco metido. Mas vale o contraste, né? Justamente porque sou uma quatrocentona”, ri.
O título da peça, por sinal, é contribuição de sua, ela sim, orgulhosamente quatrocentona mãe. Ao se deparar com a filha em leituras de textos da poeta Hilda Hilst com amigos em casa, a matriarca estranhou a alegoria de um pequeno cavalo “em cena”. Com a espontaneidade de uma porcelana de Limoges, indagou: “Why the horse?”.
Maria Alice, por ali, já engrossava sua condição de verbete do teatro brasileiro com gestos em que a performance borra os limites da arte. Atriz que esteve no elenco original de O Rei da Vela, a montagem de Zé Celso Martinez Correia a partir da qual a história dos palcos no Brasil se divide, ela traria nada menos que quatro mil micropontos de LSD para São Paulo. Além de distribuídos com os mais íntimos, vendidos para pagar os alugueis do Teatro Oficina comandado pelo diretor, ainda sem sede própria.
A PANTERA SEM TAPA
Zé Celso declarou inúmeras vezes ter tido alucinógenos como catalizadores no processo criativo de suas montagens. Mas a dama Maria Alice diz que já não se ampara em tapas na pantera. “Não é mais imprescindível. Foi, na verdade, mais uma provocação. Na época, era moda, e numa entrevista, eu aproveitei também para puxar a brasa para a minha sardinha. Passo muito bem sem isso. A maconha era estimulante porque era proibido".
Why The Horse? tem a força de um destino-manifesto. Um movimento a acompanhá-la até a última cena. “Eu quero muito fazer um texto novo, mas teria que ser uma continuação desse. Não poderia, mesmo, fazer nada que não mexesse com a morte”, diz ela, a voz tranquila de quem tem a intimidade com o outro lado da fresta – de onde, sem surpresa, o medo ainda sopra.
“A morte me assusta muito, eu tenho medo da morte, eu tenho medo de que seja uma cilada, de que de repente a morte venha não para prolongar uma vida, mas para te colocar na berlinda. Vou tentando entender. Leio Beckett. Beckett é uma lição muito grande sobre vida e morte”. Ao final de cada réquiem, Maria Alice adormece sobre um caixão. O público se aproxima. Despede-se. Beija-lhe as têmporas. “É uma forma de ir entendendo”, diz.
“Eu comecei a fazer brincadeiras em torno da morte. Em alguns momentos, o público ri. Quando eu morrer, não quero choro, nem vela”, diz ela que, numa fala que lembra o compositor Juliano Holanda, quer também morrer em Pernambuco. “Ainda morro aí”, ela diz, antes de deixar um riso soprar dos lábios cobertos de um batom vermelho como não deve ser o da morte.