No livro A Invenção do Nordeste, o pesquisador Durval Muniz Albuquerque Junior revela como o que hoje entendemos por uma identidade regional é fruto de uma construção que atendeu, sobretudo, a questões políticas. Em consonância com essa percepção, é possível observar tensionamentos crescentes por parte dos pensadores e artistas a respeito do imaginário sobre esse recorte geopolítico e cultural. Nesse sentido, é particularmente instigante a proposta da exposição À Nordeste, que atualmente ocupa o Sesc 24 de Maio, em São Paulo.
Com curadoria de Clarissa Diniz, Bitu Cassundé e Marcelo Campos, a mostra reúne 343 obras de 160 artistas (Pernambuco conta com 40 representantes na exposição). Esses criadores, provenientes dos nove estados que compõem a região, desafiam o visitante a ampliar o olhar sobre o que se entende com0 Nordeste e, por consequência, “arte nordestina”. Assim, a crase do título aparece com uma ideia de deslocamento, evitando o reducionismo do que seria “o” Nordeste. Provoca sobre a ideia de estar à margem, em confronto com o centro (seja ele qual for).
“Nós três já desenvolvíamos pesquisas, que são sobre a cena contemporânea e também históricas, e tínhamos interesse em cruzar essas experiências. Para a exposição, além dessa bagagem, fizemos viagens aos nove estados para nos aprofundarmos e acessarmos artistas que estivessem fora desse radar. Um dado importante é que a gente buscou pensar sobre nossas próprias experiências enquanto nordestinos, longe de uma fantasia do que seria o Nordeste. Queríamos sair dos pontos referenciais já compartilhados”, explica Clarissa.
Ciente da dificuldade de dar conta dessa produção pulsante, a curadoria se propôs a agregar um número robusto de obras, entendendo a mostra como uma ocupação. Apesar de estar disposta em espécies de ilhas temáticas – Futuro; Insurgências; (De)coloniedade; Trabalho; Natureza; Cidade; Desejo; e Linguagem – não há linhas do tempo ou formas corretas de ler os trabalhos. Há, antes de tudo, uma imersão em um conteúdo diverso, com obras que por vezes dialogam, mas que também são marcadas por particularidades.
Dessa forma, estão reunidas obras de artistas como Vicente do Rego Monteiro, Cícero Dias, Lula Cardoso Ayres, Mestre Vitalino, Paulo Bruscky, ao lado do coletivo virtual Saquinho de Lixo (ler vinculada) e Romero Britto, promovendo diálogos sem hierarquização. São trabalhos de diferentes linguagens e suportes, que revelam a diversidade dessa produção.
“Não dá para continuar projetando identidades que não existem, alimentar um ideal fictício e até conservador do Nordeste. O que constitui sentido no nosso cotidiano? Não tem como olhar de forma engessada para essa diversidade do que é o Nordeste, com sujeitos que estão em posições muito diferentes e que no campo da arte têm muitas formas de criar, dos artistas ditos populares aos ditos contemporâneos. O Nordeste, comparado com o eixo Rio-São Paulo, é uma região que tem menos campo institucional para a arte, menos museus, menos dinheiro para a área. Nossa experiência de criação, se fosse depender de uma experiência institucionalizada de arte, estava ferrada. Então, ela está mais próxima da experiência da rua, do cordel, do que dos museus e dos manuais de história da arte, por exemplo”, reflete a curadora.
DISPUTAS NO CAMPO DA ARTE
Para Clarissa, evidenciar as disputas que ocorrem no campo da arte possibilita a expansão do olhar sobre o contemporâneo. Tome-se como exemplo Romero Britto. O pernambucano é provavelmente o artista comercialmente mais bem sucedido do país, com grande inserção internacional, mas não configura nas grandes exposições.
“Ele está totalmente fora do cânone da história da arte, mas está na casa das pessoas, nos cadernos, na capa do celular. É uma relação extremamente afetiva e também mercadológica, pautada pelas lógicas do capitalismo. Estamos falando de um artista negro, nordestino, que imigra e que se insere dentro de uma lógica de produto, que é um pensamento muito contemporâneo. Isso nos interessava muito – um artista dentro do sistema mercadológico, mas excluído do circuito da arte”, reforça.
Outro ponto que chama a atenção na exposição é a área voltada para os corpos dissidentes e para a sexualidade. Em um momento em que conteúdos eróticos têm sido alvo de ataques nos espaços voltados para a arte, a decisão de dedicar uma área para essa produção demarca uma preocupação com a visibilidade desses corpos e discursos. O acesso, no entanto, só é permitido a maiores de 18 anos.
O jornalista viajou a convite do Sesc 24 de Maio