Ariano Suassuna foi um escritor e intelectual prolífico, com uma produção vasta e amplamente revisitada por sua força e originalidade. Obras como O Auto da Compadecida, O Santo e a Porca e A Pedra do Reino estão imbricadas no imaginário popular, mas alguns de seus trabalhos, até há pouco, permaneciam inéditos. É o caso de Auto de João da Cruz, peça que acaba de ganhar sua primeira adaptação profissional pelas mãos da Cia OmondÉ (RJ).
Escrito em 1950, o texto ganhou no ano seguinte um concurso promovido pela Secretaria de Educação de Pernambuco. Chegou a ser anunciado como um dos próximos trabalhos do Teatro do Estudante de Pernambuco (TEP), mas só foi montado em 1958 pelo Teatro do Estudante da Paraíba e, então, apresentado no Recife. Em uma crítica da época, escrita por José Laurênio de Melo, a peça foi aclamada como “uma afirmação concreta e vigorosa do talento do autor”.
A dramaturgia conta a história de João, um jovem pobre e ambicioso que para mudar de vida, sai em busca de riquezas. Dois personagens, o Guia e o Cego, fazem uma aposta por sua alma. João, ilusoriamente, passa a ter tudo que deseja, ao mesmo tempo em que vai se distanciando de suas virtudes, família e amigos. O texto é uma versão nordestina de Fausto, de Goethe, acrescido de influências da literatura local.
No elenco da adaptação da OmondÉ, uma companhia formada por artistas de diferentes regiões do país, estão André Senna, Elisa Barbosa, Iano Salomão, Júnior Dantas, Leonardo Bricio, Luis Antonio Fortes, Tati Lima e Zé Wendell. Para o cenário e os figurinos, a diretora Inez Viana optou pelo minimalismo, como uma espécie de instalação com alguns poucos galhos secos, e cores que não ficassem no ocre que tanto caracteriza o Nordeste no imaginário do Sul e Sudeste.
“Ariano é universal e sua obra continua a falar sobre nosso tempo. Sua visão da arte, como ele parte do popular para formar um erudito, é preciosa. Ele faz uma falta danada neste momento do país. Uma orientação dele neste momento seria preciosa para todos nós. Tenho certeza que ele ficaria triste com o que está acontecendo com a cultura que ele tanto amava, com o povo brasileiro”, enfatiza.
Inez disse estar extasiada em receber essa peça de presente do artista visual Dantas Suassuna, filho do escritor. Não é a primeira vez que ela tem o desafio (e privilégio) e montar um texto pouco conhecido do mestre: a estreia da Cia OmondÉ, em 2009, foi com As Conchambranças de Quaderna.
“Quando procurei Ariano e pedi um texto inédito para minha primeira direção profissional, ele me ofereceu As Conchambranças... que só havia sido encenado por dois grupos. A gente fica muito abismado com o fato de que este texto estivesse inédito há tanto tempo. Mas, Ariano era assim: não divulgava muito sua produção, mas era generoso com quem o procurava e pedia trabalhos. Ele escrevia por prazer”, conta.
RESISTÊNCIA
A diretora tem uma ligação forte com a obra do autor, que ela considera dos mais importantes da literatura mundial, com uma originalidade comparável à de Shakespeare e Gil Vicente. Seu primeiro contato com o paraibano de coração pernambucano foi em 1998, quando se apresentou no Recife e o autor estava na plateia.
No ano seguinte, ela dirigiu o documentário Cavalgada à Pedra do Reino, narrado por Suassuna. A amizade deu origem a outros projetos, como o primeiro Festival Ariano Suassuna no Rio de Janeiro (2001). A parceria com a família do escritor continuou e, entre os projetos de Inez e Dantas Suassuna, está a montagem de Os Homens de Barro, com Matheus Nachtergaele, que possivelmente se desdobrará em um produto audiovisual.
“É uma época complicada para a cultura, mas Ariano sempre dizia que o sonho necessita do homem, então é preciso resistir. Ela falava que a gente precisa ouvir o Dom Quixote que está dentro da gente. Este furacão vai passar. Vai deixar muita destruição, mas vai passar. E vamos sobreviver porque enquanto houver uma pessoa para contar uma história e outra para ouvir, o teatro existirá”, reforça.