O ano de 1941 foi especialmente difícil para Henri Matisse. Homem que rivalizava saudavelmente com Picasso pelo status de artista-síntese do século 20, Matisse foi diagnosticado com um câncer no abdômen. Não podia ficar em pé diante do cavalete com os pincéis na mão. Compulsoriamente sentado, contudo, usou papel e tesoura para reinventar a si próprio e transformar a velhice doente num dos momentos mais brilhantes da arte moderna ocidental. “Com suas colagens, Matisse superou uma tensão anterior que existia entre cor e linha. A cor passou a ser o próprio contorno”, comenta Anna Paola Baptista, coordenadora técnica dos Museus Castro Maya, no Rio de Janeiro, e curadora responsável pela exposição do referencial álbum, em cartaz a partir de hoje na Caixa Cultural, no Recife Antigo.
Marco na história da arte moderna, não é apenas a série responsável por imprimir a imagem do Ícaro azul em dezenas de milhares de camisetas, canecas e outros suvenires ostentados mundo afora pelos fãs saídos de uma exposição do artista em qualquer ponto do globo. “O mais belo livro de arte do século XX”, segundo as palavras do crítico paulistano de arte Paulo Herkenhoff, Jazz redesenharia paradigmas na arte. “Até então, a colagem era considerada inferior à pintura. Matisse não hierarquizava, a colagem passou a ser algo de uma importância compatível com qualquer outra linguagem”, diz a curadora.
As 20 pranchas de Jazz estão dispostas sequencialmente numa única parede do segundo andar da Caixa Cultural. A curadora as dispôs numa sequência que vai das figuras mais vívidas à abstração das plantas representando lagoas. As peças em exposição fazem parte do exemplar de numero 196 da impressão de Jazz, pertencentes ao acervo dos Museus Castro Maya no Rio de Janeiro. Uma das 250 impressões assinadas por Matisse da série original. “Não era a primeira vez que Matisse usava colagem, ele chegou a usar a técnica num estudo para o quadro A dança (1909), o símbolo máximo do movimento da pintura europeia que buscava abandonar o excesso de intelectualismo em busca de uma reenergizante pureza das civilizações consideradas mais primitivas conhecida como fauvismo. De uma tensão dinâmica notável, o quadro mais famoso de Matisse, supostamente inspirado por um grupo de pescadores numa roda de dança, se estrutura com apenas três cores: azul, verde e um rosa-laranja nos corpos dos personagens na paisagem campestre.
A cumplicidade do editor e crítico francês Tériade, contudo, foi o incentivo que faltava a Matisse para realizar um álbum só com papéis recortados que, antes, eram apenas estudos para a confecção de La Danse e se tornaria um dos pontos altos na obra de um Matisse grandemente criador, já perto do fim da vida. “Pela primeira vez, a colagem era um fim em si, e não um meio”, diz a curadora. Matisse passou cinco anos trabalhando no álbum.
MUSICAL
Com narrativas sobre elementos de circo (nome, aliás, pensado inicialmente para batizar o álbum), viagens e contos populares, impressiona também pelo ritmo visual, contundente e sincopado como o de uma banda de jazz. Ao lado das imagens, há reproduções dos fac-símiles com comentários sobre os assuntos em questão.
Como o quadro Enterro (1947), de Cândido Portinari, roubado em 2015 e alvo de uma tentativa de assalto no último sábado, no Museu de Arte Contemporânea de Pernambuco (MAC-PE), em Olinda, o álbum Jazz já foi objeto de roubo no Brasil. Avaliado em cerca de 200 mil dólares cada, há cerca de cinco exemplares de Jazz no Brasil. O álbum de uma coleção particular no Rio de Janeiro já foi roubado e depois encontrado na Argentina. Nove anos depois de ser furtado, um dos exemplares do álbum Jazz foi devolvido em 2015 pela polícia à biblioteca pública Mário de Andrade, em São Paulo.
Não há qualquer razão especial para a exposição de Jazz no Recife. O que, aliás, não faz a menor falta. “Não mesmo. Até porque não precisamos de uma razão específica para ver as obras de Matisse. Devemos vê-las sempre”, brinca a curadora, mestre em História da Arte e Design pela UCE-Birmingham, Reino Unido, e doutora em História Social pelo IFCS-UFRJ.
“A obra faz parte de uma coleção no Brasil e é relativamente fácil de circular e ser exposta. Assim, o público fora do eixo Rio-São Paulo pode ter acesso ao álbum”, diz a curadora. A exposição fica em cartaz até junho antes de seguir itinerário pelo Brasil.
Henri Matisse - Jazz. Caixa Cultural Recife, Avenida Alfredo Lisboa, 505, Bairro do Recife. Fone: 3425-1915. De terça a sábado, das 10h às 20h. Domingos, das 10h às 17h.