Coletiva

A aspereza do feminino em mostra na Amparo 60

Num gesto afirmativo da política estética do corpo, a galeria realiza sua primeira mostra protagonizada só por mulheres

Bruno Albertim
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Bruno Albertim
Publicado em 01/03/2018 às 2:11
Diculvulgação
Num gesto afirmativo da política estética do corpo, a galeria realiza sua primeira mostra protagonizada só por mulheres - FOTO: Diculvulgação
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 Mineira radicada no Recife, Mariana de Matos concebeu dois sociogramas: de longe, parecem labirintos gráficos idênticos. De perto, percebemos em seus caminhos internos obstáculos diferentes. No primeiro, o homem branco, “não racializado socialmente”, enfrenta menos entraves. No segundo, os corpos negros, “socialmente demarcados”, enfrentarão mais percalços para cumprir a trajetória. Em outra obra, a veterana Alice Vinagre, nome obrigatório das artes visuais brasileiras desde os anos 1980, cola uma jaqueta sobre uma tela tingida em tons de vermelho-denuncia, palavras ao redor, para problematizar o impeachment da presidenta Dilma Roussef como uma violência, além de política, de gênero. Já a pernambucana Clara Moreira apresenta dois desenhos de suas série de seres híbridos, fêmeas com cabeças de pássaro, para evidenciar como, na experiência indivíduo-social, as mulheres, mais que os homens, precisam vivenciar elementos de uma animalidade incontornável.

Esses são três dos trabalhos da mostra A noite não adormecerá, aberta a partir de hoje, a primeira coletiva exclusivamente composta por artistas mulheres da Amparo 60, referência nacional no panorama da arte contemporânea brasileira, única galeria do Nordeste, por exemplo, a participar de eventos como a feira internacional SP Artes responsável por ditar, ano a ano, humores no mercado brasileiro. Foi a própria galerista Lúcia Costa Santos quem teve o impulso para uma exposição exclusiva com mulheres. “Há uns sete anos, a ideia está na minha cabeça. Os homens são sempre maioria, então, eu me perguntei, onde estão as nossas artistas mulheres?”, comenta ela.

Batizada a partir do título de um poema da mineira Conceição Evaristo, a mostra tem curadoria assinada por Julya Vasconcelos. Para longe dos clichês mais confortáveis e conformistas, a curadora procurou reunir poéticas que fugissem da visão castrante do senso comum sobre a feminilidade. Na mostra, o feminino não acalenta ou amamenta. Antes, exibe uma “sensibilidade-combate” premente nas reconfigurações dos papeis de gênero do contemporâneo.

HETEROGÊNEO

“É o que a Judith Butler chama de corpos que não importam. O corpo da mulher não importa, o corpo da mulher artista e seus temas não importam, ou são lidos de maneira rasa, isso quando não menosprezados em sua profundidade e elasticidade. Estas livres expressões que estão nessa coletiva são absolutamente urgentes. É urgente falar, ouvir e jogar luz. Então quando chamamos esta coletiva de A noite não adormecerá é em alusão à necessidade de adentrar nestas geografias desconfortáveis, indigestas e urgentes. A exposição fala mesmo de uma espécie de insônia e sobre o que estes olhos sempre abertos estão vendo e tramando”, detalha a curadora, lembrando que, em comum, os trabalhos caminham sobre uma certa “aspereza” do feminino.

“Temos um grupo heterogêneo de artistas mulheres, contemporâneas, mergulhadas numa crise de ordem política, econômica e moral, que é o que a gente tem vivido nesse país, num processo de cinismo crescente. Como estas mulheres se expressam? Como adentrar e mostrar estes territórios por meio da pintura, da fotografia, da performance, do desenho, do soco no estômago? Acho que esse grupo parte de uma potência discursiva e estética desconcertante e afiada. Não são trabalhos delicados: são ásperos, e essa é definitivamente uma qualidade deles”, detalha.

Se liberdade, inclusive de conceitos, norteia a mostra, a galerista Lucia Santos teve o cuidado de são se ater ao casting tradicional da galeria. “Seria contrasensual”, pontua ela, sobre a série de trabalhos que exploram desde a construção social do subjetivo feminino às várias violências enfrentadas pela mulher enquanto corpos sociais.
Para tecer a trama de narrativas, foram convocadas artistas do casting da Amparo 60, como Juliana Lapa, Amanda Melo da Mota, Juliana Notari, Alice Vinagre e convidadas, como Regina Parra (SP), Virgínia de Medeiros (BA) e Regina Galindo (Guatemala), Gio Simões, Clara Moreira, Marie Carangi, Regina Galindo e Mariana de Matos.

Nem todas sugerem uma certeza como ponto de chegada. A pernambucana Juliana Lapa, por exemplo, apresenta um extrato de uma impressionante série de desenhos em grafite de grandes dimensões em que fios e seres diversos encampam o breu como arena de construção da subjetividade. Gio Simões, por exemplo, recompõe cartas de tarô a partir de cenas fotografadas de mulheres que gestam a si próprias, existencialmente, a partir da dicotomias entre comunhão e ruptura com a natureza ao redor.
“Como portar-se diante das violências e abusos sofridos, especialmente pelas mulheres? Tornar-se terrível, combater, revidar ou manter-se no estado do medo?”, questiona a curadora.


A noite não adormecerá. Coletiva com Alice Vinagre, Amanda Melo da Mota, Clara Moreira, Gio Simões, Juliana Lapa, Juliana Notari, Maré de Matos, Marie Carangi, Regina Galindo, Regina Parra e Virgínia de Medeiros. Curadoria: Julya Vasconcelos. Abertura: hoje, 19h (para convidados. Visitação de 2 de março a 21 de abril. Galeria Amparo 60 Califórnia. Rua Artur Muniz, 82. Primeiro andar. Fone: 3033-6060.

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