Endereços precisos não são requisitos fundamentais para localizar alguém ou algum negócio no Morro da Conceição. As diretrizes são dadas tomando-se algum mercadinho ou outra construção relevante no local. A Praça de Nossa Senhora da Conceição é o epicentro para onde tudo converge e de onde tudo flui. Sobrenome também não é obrigatório, basta o prenome. Trata-se de uma comunidade unida por laços estreitos. Os mais velhos, geralmente, não nasceram ali, mas têm raízes fincadas há tanto tempo que o passado de não pertencimento já é uma vaga lembrança. Embora hospitaleiros, os moradores guardam uma certa reserva em relação aos que vêm de fora. Nem todos se dispõem a ser entrevistados, a ter suas vidas postas numa vitrine, colocados em alto relevo. Provavelmente por experiência pregressas, aprenderam que a discrição é a alma do negócio.
As histórias de Geraldina, 90 anos, Zumar, 70, e Jacilene, 41, são separadas por décadas entre si, mas unidas por uma tarefa que passou a ocupar a maior parte de suas vidas: cozinhar. Sempre mencionadas como referência quando se procura uma boa quituteira, trazem no repertório lições aprendidas com as mulheres que as antecederam, mães e avós, somadas à experiência com serviços que prestaram aos que habitam a parte baixa da cidade, onde está a maior concentração de renda.
Geraldina não nasceu no Morro, mas na Rua Imperial, no Bairro de São José, zona central do Recife. Veio para os pés da santa para ajudar a irmã a preparar as iguarias para a festa em homenagem à padroeira. Mas sua escola culinária começou prematuramente. Perdeu os pais muito cedo e, aos 10 anos de idade, já trabalhava como empregada doméstica. “O Recife não era tão grande, tinha menos gente rica para dar emprego. Pobre não tinha escola. Não aprendi nem a ler nem a escrever”.
Com tão pouca idade, os serviços atribuídos a Geraldina eram o de menor monta: lavava os pratos, vigiava uma panela, chegou a trabalhar por um prato de comida e um vestido usado. Aprendeu de observar. Presenciou a passagem do Zeppelin pelo Recife e recorda-se dos “melhores carnavais”. Com a última família para a qual trabalhou, permaneceu 25 anos: “Criei os três filhos deles. Eu adoro eles, e eles me adoram”. Há 12 está aposentada, de fato e de direito, e cozinha apenas para os seus.
Acumulou no receituário mental preparos variados: vatapá, bobó, rocambole, panqueca, pastelão, suflê. Para seu dia a dia, elabora coisas simples: um feijãozinho com muito charque, macarrão e omelete. Para o almoço do dia 26 de dezembro, em comemoração à passagem de mais um ano, está planejando uma dobradinha. Mas isso não importa para Geraldina, ela sabe que “tudo o que ela faz eles adoram”. E isso é uma gratificação para qualquer cozinheira.
Comida caseira
O talento culinário é algo valorizado no Morro da Conceição. De modo que não são poucas as residências que se transformam, também, em central de preparo de alimentos para o público externo. Nesses lares simples, as cozinhas são excepcionalmente bem cuidadas, renovadas e equipadas com os equipamentos necessários.
É numa delas (perto da Defensoria Pública) que Dona Zumar trabalha, com vista para as encostas do Morro e as casas ali enfileiradas, em aclives e declives. Aprendeu com mãe. São 70 anos de vida, 60 de Morro da Conceição, 50 de fogão. Sua rotina começa às 4h para montar as refeições que serão servidas lá mesmo ou em quentinhas para levar, pelo mesmo o preço: R$ 10.
Dona Zumar é um espírito livre, gosta de independência ao empreender: “Quero ficar à vontade, sem ter vínculo com nada”, garante, traduzindo uma autossuficiência muito comum aos habitantes daquela comunidade. Seu acervo culinário é vasto: galinha assada e guisada, bife ao molho, cabidela, cupim, milanesa de frango e muito mais, mas é a rabada que ela julga ser seu carro-chefe.
Jacilene deixou a cidade de João Alfredo, no Agreste pernambucano, aos 16 anos, onde a família retirava os alimentos de uma agricultura de subsistência: era plantar, colher, comer. Veio, como tantas outras antes dela, para o serviço doméstico, no esquema de trabalhar e morar na casa da família que a contratava: “Tinha folga para visitar a família uma vez por mês, e olhe lá”. Foi babá e passou a se virar como cozinheira.
Há um ano, Jacilene assumiu o lugar da irmã, Maria, à frente do negócio de entrega de comida. Sua fama tem corrido graças ao menu do primeiro dia útil da semana, que ela chama de “Segunda da Sopa”. Chamar de sopa o preparo feito por Jacilene é subestimá-lo. Trata-se de um caldo espesso engrossado à base de carnes potentes, como costela de boi, patinho e charque. “Não é para quem come salada, não”, garante. Para os fortes.
Às terças-feiras, Jacilene fecha as portas para a manutenção. Dia em que ela faz uma daquelas faxinas minuciosas, desmontando tudo das prateleiras, armários e geladeira. É o momento das compras, dos pagamentos, da pausa necessária para se reagrupar e seguir adiante nos demais dias da semana. Quiabada, mão de vaca, dobradinha, cabidela, peixada seguem a linha nada light da proposta, mas o que os visitantes buscam para recuperar as forças em dia de peregrinação é mesmo sua buchada. “Vem gente de longe provar”, garante Jacilene.