Nem sempre é natural que um filho aceite as escolhas de um pai. Amar não significa entender. Maren, uma adolescente alemã, começa a se descobrir mulher. Enquanto isso, seu pai já se descobriu e assumiu uma nova identidade: Sophia. A relação – não tão simples, mas nem por isso explosiva – de uma garota e seu pai transexual é tema do filme Transpapa, dirigido pela alemã Sarah Judith Mettke. O longa está no Janela Internacional de Cinema do Recife, que começa nesta sexta (9) e vai até o dia 18. A exibição é neste sábado (10), às 17h30, no Cine São Luiz. A diretora veio ao Recife acompanhar a estreia do filme na cidade e protagoniza debate após a sessão.
O filme integra uma das mostras paralelas do festival: Panorama Alemão. Além de Transpapa, oito filmes – todos lançados entre 2011 e 2012 – foram escolhidos para representar a fase atual do cinema germânico. O perdão, de Matthias Glassner, é exibido nesta sexta, às 18h, no mesmo local.
O problema de temas como transsexualidade não é a falta de pessoas falando sobre isso, como se esquivassem-se do assunto. É como elas falam. Mutantes. Pessoas que trocam de sexo merecem atenção porque não são “normais”. Pessoas que mudam de sexo são exageradas, fora do eixo. O cinema tem o dom de oferecer um contraponto profundo. Para mostrar que transexuais também são pessoas comuns, Sarah se aventurou “na coisa mais difícil que fez na vida” e escolheu o tema do seu primeiro longa. Acontece que a própria Sarah também é filha de um transexual. Sobre até onde a produção é autobiográfica, ela resume: “O filme traz meus sentimentos”, diz, em entrevista ao JC.
Confira a entrevista na íntegra:
JC - A transexualidade ganhou os holofotes da mídia, mas ainda em um modo superficial. Como o cinema pode tratar esse assunto de uma maneira mais profunda?
Sarah - Contando as histórias sob uma perspectiva interna. Eu prefiro contar histórias sobre "a vida comum" de uma perspectiva externa, de fora, para todo mundo poder se conectar com elas. Mas situações não usuais são melhores se contadas de uma visão interna. Portanto - como escritor - você tem que olhar a situação como se fosse perfeitamente normal. Nesse caso foi uma coisa simples de fazer, já que meu pai é também um transexual. Para mim foi uma situação familiar muito normal.
JC - Como lidar com a linha tênue entre mostra o transexual como uma pessoa comum e mostrá-lo como um mutante Que "munições" você usou para alcançar a primeira opção?
Sarah - Bem, a chave tem que ser o amor. Como filha, você ama seu pai. Como escritor, você tem que amar seus personagens. Mesmo se eles forem um tanto loucos ou se comportem de uma maneira que você não gosta. Eles não devem ser "vendidos" e, sim, entendidos. E, se você quer entender, você não deve julgar, mas olhá-los com amor. Na verdade, é essa é uma das razões por que eu faço filmes: eu quero entender. Meu pai, minha vida, o amor... Tudo. Eu acho que tenho que fazer muitos filmes ainda para conseguir isso.
JC - Maren está se tornando uma mulher. Seu pai se descobre como uma. Como eles se relacionam entre si?
Sarah - Elas querem ser entendidas mutualmente, mas não tentam entender uma a outra. Sophia quer ser aceita como mulher e até mesmo como mãe. Maren quer ser vista como filha, como uma garota tornando-se uma mulher que perde o pai. Isso torna muito difícil a aproximação de uma com a outra. Elas poderiam aprender com a outra mas, na verdade, não querem. O que é um típico problema entre pais e filhos.
JC - Qual é a parte mais difícil de lidar com um tema como esse? E a mais prazerosa?
Sarah - Foi muito difícil escrever o roteiro. Talvez a coisa mais difícil que já fiz na minha vida. Eu não esperava ser tão difícil quando decidi fazer o filme. Não foi difícil por conta do tema, mas por eu ser filha do meu pai. Eu queria entender, mas também entreter sem vender o meu pai como um mutante-transexual ou qualquer coisa que as pessoas queiram entender.
Foi prazeroso por que depois de terminar o filme, eu sabia que tinha crescido um pouco. E foi bom porque foi divertido filmar. Agora eu estou tendo bons momentos recebendo a resposta da audiência.
JC - Quando o pai decide se tornar mulher, ele alcança um sonho. Podemos entender o preconceito da sociedade como um incômodo geral com pessoas que concretizam seus desejos? Podemos ver o preconceito como uma frustração interna de um sociedade hipócrita?
Sarah - Eu não sei se o pai realiza seu sonho. Na minha opnião é mais uma necessidade. Então eu não compararia a mudança de sexo com uma pessoa comprando um carro ou fazendo plástica no nariz, mas como uma necessidade como comer ou beber. Mas, claro, é uma questão de perspectiva. Se você ver isso como um sonho que se torna real, ou se você ver isso como um estorvo de ter nascido como um homem, mas se sentindo mulher.
Eu não tenho certeza se a sociedade é intolerante porque eles queriam ser tão livres e poder alcançar seus sonhos - nunca pensei sobre isso. Talvez. Mas, em geral, a sociedade - o que quer que isso seja - não gosta de coisas diferentes.
JC - Você faz parte de uma nova geração de diretores alemães. Como você define/enxerga a nova fase do audiovisual germânico?
Sarah - Já que nossa geração não tem uma ligação direta com a Segunda Guerra ou a Guerra Fria, tem uma grande variedade de tópicos e novos diretores. Além disso, há muitos filmes experimentais aparecendo, parte por conta do desenvolvimento técnico. Hoje qualquer pessoa pode fazer um filme com seu celular. Devido aos efeitos das crises finaceiras, menos oportunidades de financiamento estão disponíveis. Essa situação leva ao crescimento de projetos criativos de baixo orçamento produzidos por novo diretores. Não sendo influenciados pelas regulamentações do dinheiro público, as opiniões dos produtores ou canais de TV podem às vezes resultar em roteiros não convencionais e divertidos.
JC - Para você, quais filmes e diretores estouraram nos últimos anos do cinema alemão?
Sarah - Andreas Dresen; Tom Tykwer; Hans-Christian Schmid; Christian Petzold; Caroline Link. E, claro, Michael Haneke - mesmo ele sendo austríaco, os alemães querem que ele seja alemão.