É um portão que se abre com lentidão, um sinal que pisca vermelho em horário inapropriado, um “cheguei bem” que se esquece de avisar, o tanto de indigestão que os telejornais policiais nos proporcionam pontualmente nas três refeições diárias. Com que ruídos reconstruir o terror silencioso que mora nas ruas, casas e arranha-céus do Recife? Essa pergunta é respondida com precisão assustadora em O som ao redor, primeiro longa de ficção de Kleber Mendonça Filho, que estreia nesta sexta (4) na cidade que retrata.
Para elaborar e finalizar o som do filme – essência de sua construção narrativa –, o cineasta pernambucano contou com uma equipe que se dividiu em quatro etapas durante cerca de três meses, entre Recife e Rio de Janeiro. Entre os responsáveis pelos barulhos minuciosos que avizinham a trama, estão o compositor da trilha sonora DJ Dolores, a editora de som Catarina Apolônio, o engenheiro de som Gera Vieira e o assistente de mixagem Carlos Montenegro (esses três últimos do estúdio Carranca, no bairro da Torre).
“O som começou a ser construído desde a gravação do filme e ganhou força ainda na montagem. Não consigo imaginar uma cena sem pensar no som”, afirmou Kleber Mendonça em entrevista ao JC . “Para a etapa inicial convoquei DJ Dolores, com quem trabalhei em Enjaulado (1997), meu primeiro curta de ficção. Encomendei uma série de sons que retratassem a cidade, que se camuflassem na ambiência, e fiquei bastante feliz com o resultado”, lembra, se referindo ao mosaico sonoro montado com bate-estacas, carrinhos de CD pirata, sirenes e latidos. Os sons também foram angariados pelos engenheiros de captação de som Nicolas Hallet e Simone Britto, que gravaram 48 horas de sons em sete semanas.
DJ Dolores, codinome para Hélder Aragão, lembra que um dos detalhes de O som... é a batida grave que marca a tensão do filme em alguns momentos. “Além disso, o tema musical que abre o longa é o mesmo que encerra Enjaulado, que é uma espécie de esboço de O som...”, diz, referindo-se a música Setúbal (Cde. da Boa Vista).
A segunda etapa do processo foi o desenho de som, feito em conjunto por Kleber e Pablo Lamar. “Essa fase foi o esboço da junção entre o som e as cenas”, lembra o realizador, que somou ao seu filme mais um prêmio no Festival de Gramado, o de Melhor Som, vencido por Lamar.
O processo de edição de som foi feito no Recife num intensivão entre o final de novembro de 2011 e o início de janeiro de 2012, no estúdio Carranca. No mesmo local responsável pelo som dos pernambucanos Recife frio (também de Kleber, de 2009), Muro (Tião, 2008) e Avenida Brasília Formosa (Gabriel Mascaro, 2010), foram feitas a mixagem e a edição sonora. “Kleber nos deu uma ideia muito clara do som que ele imaginava para o filme. Ele transmite com firmeza e certeza o que quer”, afirma Gera Vieira, engenheiro de mixagem do estúdio.
“Sua atitude foi importante para que pudéssemos imprimir as ideias no som do longa, e também sugerir acentuações e nuances mais suaves, ou fortes, dependendo da cena. Conseguimos chegar ao resultado de um som que auxilia o filme a se descortinar aos poucos. O que pretendemos foi um realismo exacerbado, um acréscimo ao som direto, dentro de uma estrutura mais dramática”, explicou.
A quarta etapa, a mixagem final, foi feita no Rio de Janeiro. Ricardo Cutz – que trabalhou em filmes como Viajo porque preciso, volto porque te amo (2009) e Era uma vez eu, Verônica (2012), ambos de Marcelo Gomes – repassou em três dias o que havia sido feito no Recife, adequando a sonoridade ao sistema Dolby (equipamento ainda indisponível em Pernambuco).
Kleber, que não vê a hora de retomar o projeto de Bacurau, seu segundo longa, comentou sobre o resultado final do som de sua estreia nos longas de ficção. “Estou bem satisfeito com a percepção do filme, sobretudo com a de seu som, que é muito compartilhado em sua dinâmica interna. Ele tem o som que eu acho que deveria ter. Em geral, o som é 10% de um filme. Para mim, no caso de O som ao redor, esse percentual sobe para 50%”.