É uma diversão de cinéfilo discutir qual é a melhor das cenas de "O Iluminado" (1980), de Stanley Kubrick. O passeio de velocípede do garoto Danny pelos longos corredores do hotel até se deparar com as duas garotinhas? As tomadas aéreas, logo no início, que conduzem ao Hotel Overlook? Nicholson conversando com um barman imaginário no bar do hotel? A perseguição do pai ao filho no interior do labirinto de arbustos cobertos de neve? Enfim, são tantas as passagens memoráveis que cada espectador, a cada geração, poderá eleger a sua favorita. E essa possibilidade múltipla de admiração talvez seja o que defina um clássico, que o público poderá rever, a partir desta sexta-feira (28) em tela grande e cópia recuperada.
Kubrick, sabemos todos, era um perfeccionista. Seus ângulos de filmagens, os movimentos de câmera, as cores e simbologia empregadas - nada disso aparece de maneira gratuita. Cada elemento tem sua função.
Juntos, constituem a própria linguagem cinematográfica, indissociável do “conteúdo” expresso na história. Este provém de um romance homônimo escrito por Stephen King. O candidato a escritor Jack Torrance (Jack Nicholson) aceita emprego de zelador no Hotel Overlook, nas montanhas do Colorado, estabelecimento que fecha durante o inverno. Torna-se inacessível quando cercado de gelo. A Torrance, o isolamento parece ideal para escrever o romance com que sonha iniciar carreira literária. Leva para o hotel a mulher, Wendy (Shelley Duvall), e o filhinho, Danny (Danny Lloyd).
O garoto Danny é o “iluminado” do título - aquele que enxerga o que os outros não podem ver, dom que nem sempre se constitui em vantagem para quem o possui. Danny é quem intui que alguma coisa de muito errada aconteceu naquele hotel no passado. É a mente lúcida que enxerga o que seu pai apenas sofre. Sim, porque, progressivamente, Jack Torrance vai sendo tomado por um processo alucinatório do qual não existe escapatória. A terceira pessoa envolvida, Wendy, esposa e mãe, está na mais apavorante das situações - a de quem nada entende do que se passa e precisa apenas se salvar, e ao filho.
A arte de Kubrick consiste em envolver uma situação de aparente normalidade nas trevas da loucura e do desconhecido. E o faz de maneira progressiva e insidiosa, prendendo o espectador em suas malhas de suspense e terror. O caminho da sanidade à loucura, do racional ao irracional, da luz às trevas é trilhado com senso de geometria, em que cada elemento conta. Do uso dos grandes espaços (os corredores intermináveis do hotel tornaram-se peça de antologia cinematográfica) à música envolvente de Wendy Carlos, com temas de Bártok, Ligeti e Penderecki, compositores favoritos de Kubrick. Do manejo original da câmera (o steady-cam nas cenas do velocípede e em outras) ao clima aterrorizante de um passado que devora o presente, como na foto em que um personagem aparece num baile dos anos 1920, ao som da melódica canção Midnight, the Stars and You. Tudo é mistério. E mistério que nem sempre se resolve uma vez terminada a história. O Iluminado é um filme que fica com o espectador, a perturbar-lhe o imaginário e a fertilizar sua fantasia.
Além dos elementos de invenção cinematográfica de Kubrick, Nicholson tem uma presença muito forte como o alucinado Jack Torrance. Existe quem ache sua interpretação over, mas, enfim, era a que se pedia para o momento, a história e o personagem. Over ou não, sua composição do papel é tão marcante que serve de modelo até hoje para filmes do gênero. Serviu, por exemplo, para a composição do personagem de Marat Descartes no recente Quando Eu Era Vivo, de Marco Dutra. Num mundo em que tudo se gasta rapidamente, um ator servir de inspiração a outro 34 anos depois não é fato a ser negligenciado.