Uma série de planos estáticos de Los Angeles guiam os olhos do espectador até o habitat natural de Lou Bloom. Envolto em sombras, mal vemos que ele rouba fios e grades metálicas de uma estação de trem. Ladrãozinho simplório, daqueles que ninguém respeita, ele se revela um ser complexo – um homem desalmado capaz de matar qualquer pessoa, amigo ou inimigo, para alcançar seus objetivos.
Lou Bloom é o personagem principal de O abutre, que estreia hoje em circuito nacional. Presente em listas dos melhores do ano de publicações americanas e britânicas, o filme confirma-se como uma das boas surpresas de 2014. Foi dirigido por Dan Gilroy, um roteirista experiente, mas que só agora, aos 55 anos, faz seu primeiro longa-metragem. O abutre é um neo-noir sobre os deserdados do sonho americano da era Barack Obama.
Como manda a tradição hollywoodiana, roteirista que passa à direção faz do primeiro filme uma espécie de súmula do que aprendeu e do que tem a dizer sobre o cinema e a sociedade americanas.
Num momento em que os Estados Unidos ainda vivem sob os efeitos de uma crise econômica devastadora, Dan Gilroy cria um personagem que sintetiza o aqui e agora do país. Isso, certamente, impediu que seu olhar tivesse algum viés de cinéfilo. Por outro lado, sua visão crítica permitiu que a realidade atual se assomasse com mais força do que o relato engenhoso de algum crime.
Desse modo, Gilroy foi muito feliz ao escolher um ponto de vista satírico para expor a TV americana e seu acentuado gosto pelo escândalo e pela exploração da violência. Numa interpretação fria e distanciada, Jake Gyllenhaal (Zodíaco) constrói um personagem, aparentemente ambíguo, que parece ter saído dos expurgos da crise econômica. Confinado num cubículo, ele aprendeu noções de empreendedorismo que pavimentam sua trajetória de reles ladrão ao principal fornecedor de cenas de acidentes e crimes para uma rede de TV de Los Angeles.
Mal comparando, Lou Bloom é uma espécie de Weegee – o fotógrafo Arthur Fellig, que nos anos 1950 tirava fotos de crimes e acidentes em Nova Iorque – da era digital, onde sobreviver é uma arte mais rentável do que captar um instantâneo poético, ainda que triste, da realidade.
No caso de Lou Bloom, ele faz da perversão um negócio: manipula a realidade, que testemunha ao chegar numa cena de crime em que grava imagens dos corpos ainda quentes de uma família assassinada por dois traficantes, para vendê-las a Nina (René Russo, que voltou a fazer filmes), uma inescrupulosa editora de um canal de TV.
Com um deus ex-machina, Lou esconde informações durante a investigação do crime e coloca policiais e traficantes para trocar tiros. Ajudado por um empregado, grava o tiroteio e a perseguição da polícia, garantindo um material que vai catapultá-lo a um novo patamar em sua carreira.
Duro, incisivo e sem apelar para saídas fáceis, O abutre é um filme que incomoda ao escancarar um sistema onde o vale tudo é a regra.
A pernambucana Juliana Guedes, que há vários anos é assistente do ator Jake Gyllenhaal, dá um salto em sua carreira ao assinar, pela primeira vez, a produção associada de um filme em Hollywood. Que ela faça muitos outros.