Muitos cinéfilos e fãs de Charles Chaplin conhecem o começo de Luzes da ribalta, um dos últimos filmes do diretor inglês. Calvero (Chaplin) chega na casa em que mora completamente embriagado e, antes de subir as escadas, nota um cheiro de gás vindo de um dos quartos da pensão. Vai até lá e vê, pelo buraco do olho mágico, uma moça desmaiada. Logo arrombada a porta, tira ela de lá e chama um médico.
O que muitos podem descobrir só agora, com o lançamento do volume Luzes da ribalta – A novela inédita que inspirou um dos maiores filmes do grande cineasta (Companhia das Letras), organizado por David Robinson, é que na cabeça de Chaplin, o início da obra não deveria ser exatamente assim. Quando a trama ainda era um projeto para o cinema, no final da década de 1940, ele deu início a uma versão estendida do argumento. Para conseguir concluir a narrativa, fez dela não um roteiro, mas sim uma novela, a única criada em vida e que permaneceu inédita até o momento.
Luzes da ribalta surgiu da impressão forte que o bailarino russo Vaslav Nijinski, um dos mitos da dança, causou ao passar por Los Angeles. O diretor e ele se admiravam mutuamente; Nijinski viu Chaplin gravar para as câmeras e confessou a ele: “Sua comédia é um balé, você é um dançarino”. Depois, Chaplin foi conferir uma apresentação do Ballets Russes e saiu igualmente impressionado. “Na hora em que ele apareceu, fiquei eletrizado. Vi poucos gênios neste mundo, e Nijinsky foi um deles. Era hipnótico, celestial... sugeria emoções de outros mundos; cada movimento era poesia, cada salto era uma elevação a devaneios inusitados”, descreveu o cineasta e ator na sua autobiografia.
O filme, que estreou em 1952, se passa em Londres, em 1914. Calvero é um palhaço famoso, mas em decadência e constantemente embriagado, que salva a jovem Terry (Claire Bloom) do suicídio. Ao cuidar dela, o ator começa a incentivá-la também a retomar a fracassada carreira de bailarina. Ela quer se casar com Calvero, mas ele sabe da sua paixão por um compositor em ascensão, Neville (Sydney Earle Chaplin, filho do diretor, na sua estreia no cinema). A partir daí, a história se desenrola com a delicadeza, o humor e a tragicidade que são marcas de Chaplin.
Apesar de ser escrita em um prosa relativamente convencional, a novela Luzes da ribalta segue esse mesmo tom. O grande acréscimo é na história por trás dos personagens, bem mais desenvolvida. Para entender melhor porque Terry vai se suicidar, o texto revela com detalhes sua infância e adolescência trágica – o pai morreu cedo e, depois de uma doença grave, a sua mãe também se foi. A irmã mais velha, Louise, precisou cuidar dela, prostituindo-se às escondidas para não magoar a caçula. Com tudo isso, Terry consegue se tornar uma bailarina, mas põe tudo a perder quando um dos funcionários do balé maldosamente afirma que conheceu Louise quando ela trabalha com programa. Ela passa mal e precisa sair da vida artística, sofrendo para se sustentar até tentar o suicídio. Na versão cinematográfica, esse pano de fundo se transforma em curtos flashbacks da garota, ainda numa espécie de coma após a tentativa de se matar.
Se a história de Terry é bastante resumida para tornar o filme mais eficiente, há também a supressão de algumas passagens envolvendo Calvero. Ele recitaria, por exemplo, o famoso solilóquio de Shakespeare, o do “ser ou não ser”, ou explicaria para Terry o conceito do riso segundo o teórico Henri Bergson.
Uma das vantagens do volume é que ele disseca todo o contexto que cerca o filme Luzes da ribalta. Uma das obras mais biográficas de Chaplin, ela foi filmada em Los Angeles, mas teve estreia em Londres: o cineasta já estava sendo perseguido nos Estados Unidos por conta do macartismo, que o acusava de ser comunista. No filme, depois de criar obras com críticas diretas da realidade da época, como O grande ditador e Monsieur Verdoux, o diretor se voltava para temáticas mais pessoais. Não só aquele encontro com Nijinski, mas também a sua infância pobre, com pais que tentaram a sorte nos teatros de Londres e sucumbiram ao alcoolismo e o medo de uma antiga estrela como ele perder a capacidade de tocar o coração do público.
Robinson ainda mostra os vários argumentos que Luzes da ribalta teve antes de virar a novela e o filme – em todas elas, o tema do balé e da troca de um parceiro mais velho por um mais novo acontece. Os protagonistas masculinos variam de nomes: Neo, Tamerlain, Naginski e até Carlitos. Por fim, ainda conclui a obra com uma imersão na Londres que Chaplin reproduziu no filme e nos teatros da época. Voltado especialmente para os inúmeros fãs do diretor e ator britânico, o volume é uma verdadeira homenagem a uma das obras-primas da história do cinema.
Luzes da ribalta - A novela inédita que inspirou um dos maiores filmes do grande cineasta, de Chales Chaplin, organizado por David Robinson – Companhia das Letras, 274 páginas, R$ 64,90