Nome de ruas e avenidas em inúmeras cidades mundo afora, maior líder afro-americano na defesa dos direitos civis e homenageado com um feriado nacional em seu nome, nos Estados Unidos, o pacifista Martin Luther King Jr., estranhamente, nunca havia tido parte de sua história retratada em um filme. Esse débito de Hollywood, que todos os dias leva às telas histórias de anônimos e falsas celebridades, finalmente começou a ser pago.
O longa-metragem Selma – Uma luta pela igualdade, que estreia nesta quinta-feira (05/02) em circuito nacional, disputa o Oscar 2015 em duas categorias: Melhor Filme e Melhor Canção Original. Glory, composta por John Legend e Common, também ator do filme, já ganhou o Globo de Ouro. A Academia de Artes e Ciências Cinematográfica de Hollywood foi criticada por não indicar Selma em outras categorias, principalmente a de Melhor Ator para David Oyelowo, que interpreta Martin Luther King.
Selma resgata um momento-chave da história dos Estados Unidos. Há 50 anos, o Dr. King liderou uma das principais lutas dos negros americanos – o direito ao voto pleno –, quando milhares de simpatizantes fizeram uma marcha entre as cidades de Selma e Montgomery, no Alabama, um dos estados mais racistas e segregadores do país.
Dirigido por Ava DuVernay, uma cineasta afro-americana de 41 anos, o filme conta esse período da vida de Martin Luther King de um ponto de vista íntimo. Ou seja, mais do que autor do discurso “Eu tenho um sonho”, o roteiro de Paul Webb privilegia o homem comum por trás do legado do herói morto, de sua efígie em alto relevo em selos ou de suas imponentes estátuas de mármore.
Amparada numa narrativa cronológica, detalhada a partir dos grampos do FBI, Ava DuVernay conta passo a passo o envolvimento do Dr. King na luta dos moradores de Selma. Em pequenas vinhetas, o espectador é introduzido na vida dele: desde quando recebe o Nobel, em Oslo, passando pelos temores da mulher Coretta, seus debates com o presidente Lyndon B. Johnson e sua pregação pela não-violência, uma prática que nem sempre foi unanimidade na comunidade negra americana. Uma pequena cena com o militante Malcolm X, que pregava a violência, mas que não se considerava inimigo do Dr. King, ilustra a divisão.
Graças a essa multiplicidade de acontecimentos, uma reconstituição de época exemplar e um elenco excelente, Ana DuVernay conduz Selma com sensibilidade, mas sem mascarar a violência cometida pelo governo nem pelos racistas da Ku Klux Klan. O atentado a bomba que tirou a vida de quatro meninas negras, logo no começo do filme, já estabelece o clima de terror a que os negros são submetidos.
Particularmente, são bastante fortes as sequências em que um policial dispara à queima-roupa contra um jovem negro, e nas duas vezes em que a polícia dispersa as tentativas de caminhada dos militantes – uma delas transmitida ao vivo pela TV para todo o país. Por causa dessas ações truculentas, que mexeram com a opinião pública e o presidente Johnson, o judiciário obrigou o estado do Alabama a acatar a lei que garantiu o voto da população negra, sancionada um ano antes.
Apesar de a luta contra o racismo não está mais na agenda dos negros americanos, Selma ganha uma força inequívoca no momento em que a a violência e a discriminação volta e meia assustam o país, como aconteceu em Ferguson, no Missouri, onde o policial Darren Wilson assassinou o jovem negro Michael Brown, em agosto do ano passado. Para aumentar ainda mais o caldo de discrimação, as autoridades do estado concluíram as investigações afirmando que não havia provas suficiente para incriminar o policial. Mas recentemente, descobriu-se imagens da polícia de Miami em que policiais treinam tiro em fotos de negros.
Por estas e outras, o filme acaba ganhando em importância ao se relaconar com Ferguson, uma cidadezinha que ningué jamais ouvira falar, o mesmo caso de Selma, em 1965. Diretora corajosa e segura de suas intenções, Ava DuVernay também acerta em cheio na escolha dos atores, principalmente aqueles que interpretam as personalidades historicamente mais conhecidas. Surpreendentemente, um bando de atores ingleses, radicados em Hollywood, enchem a tela de talento e convicção, entre eles David Oyelowo, Carmen Ejogo (Coretta King), Tom Wilkinson (Lyndon B. Johnson) e Tim Roth (George Wallace), que falam como se fossem todos sulistas de nascença. Isso, sim, é cinema acima de qualquer suspeita, feito com emoção, garra e vontade de expor as entranhas de uma nação complexa, que nem sempre deixa transparecer suas contradições.