Cinema

Que Horas Ela Volta? cria tensão entre sala e cozinha

Anna Muylaert faz do longa-metragem um filme provocante, emocionante, que representa a luta de classes do País

Ernesto Barros
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Ernesto Barros
Publicado em 26/08/2015 às 10:08
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Anna Muylaert faz do longa-metragem um filme provocante, emocionante, que representa a luta de classes do País - FOTO: Divulgação
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O longa-metragem paulista Que Horas Ela Volta?, de Anna Muylaert, que estreia amanhã em circuito nacional, repete o mesmo percurso do pernambucano O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho. Reconhecidos em festivais internacionais, os dois filmes foram lançados comercialmente em vários países, antes mesmo de chegar às salas de cinema brasileiras. Mas eles não têm apenas isso em comum, muito pelo contrário. Ao lado do carioca Casa Grande, de Felippe Barbosa, a trinca estabeleceu uma noção de relevância ao olhar o Brasil de hoje de dentro para fora.

No começo do ano, Que Horas Ela Volta? foi premiado no Festival de Sundance, nos Estados Unidos, e no Festival de Berlim, na Alemanha. No primeiro, o júri deu o prêmio de melhor atriz à interpretação conjunta de Regina Casé e Camila Márdila, que fazem uma empregada doméstica de uma rica família do Morumbi, em São Paulo, e a filha que chega para visitá-la, respectivamente. Em Berlim, o filme foi escolhido pelo voto popular o melhor da Mostra Panorama.

As duas premiações esquentaram as vendas internacionais do filme, que foi vendido para 22 países, entre eles a França e Itália, onde se transformaram em sucesso de bilheteria. Na França, por exemplo, já foi visto por mais de 60 mil espectadores. Certamente que a estrada percorrida por O Som ao Redor e Casa Grande, recebidos com críticas efusivas na revista Cahiers du Cinéma, ajudou na recepção da crítica e do público.

Afinal, os três filmes são variações de um mesmo sintoma: a mudança na estrutura social do País, alavancada pelo aumento do poder aquisitivo da classe mais pobre, aumentou a autoestima dessa parcela da população na relação inversa em que deixou os mais ricos apreensivos, como se vissem na situação uma ameaça ao status quo.

Se O Som ao Redor e Casa Grande investiram em relações de poder atávicas, representadas por chefes da família – um ex-senhor de engenhos, no filme pernambucano; um especulador falido, no carioca –, Que Horas Ela Volta? se embrenha em relações mais voláteis entre uma empregada doméstica e sua patroa, em que as diferenças entre opressor e oprimido são anuladas apenas na aparência, com cada qual no seu quadrado.

 

 

No caso de Val, a empregada interpretada com garra e sensibilidade por Regina Casé, o quadrado dela é a cozinha e seu quarto de dormir. É na cozinha que a história começa e evolui. Na relação estabelecida entre ela e Bárbara (Karine Telles), a dona da casa, até o que acontece em outros cômodos reverberam na cozinha e no quartinho. Em várias cenas, a sala de jantar é um espaço não permitido, onde Val só vai para servir. Mas a sua cama, apesar de pequena, é um lugar de afeto: é nela que Val, assim como faz a comida e lava os pratos, dá carinho a Fabinho (Michel Joelsas), o adolescente filho de Bárbara e do Dr. Carlos (Lourenço Mutarelli), que, aparentemente, ela cria desde bebê.

Esse aparente idílio, em que a família manda e a empregada obedece, apesar de ser quase da “família”, será posto de ponta-cabeça com a chega, repentina, de Jéssica (Camila Márdila). Da mesma idade de Fabinho, ela ficou para trás quando, há 13 anos, Val decidiu ir para deixar Pernambuco e ir para São Paulo batalhar o seu da menina. Embora não veja mãe há 10 anos, Jéssica vai atrás dela para ficar alguns dias, enquanto espera as provas para o vestibular de arquitetura na USP. Esse fato e sua personalidade altiva, que não aceita a desigualdade com que a mãe e elas são tratadas, vão gerar faíscas na relação com Bárbara.

Mesmo adotando um olhar sutil, Anna Muylaert não se esconde em falsas delicadezas para mostrar o intenso debate que se estabelece entre os personagens – principalmente o que representam –, sem que com isso abdique do humor ou descambe para o revanchismo social. No trajeto de ressignificação social de Val e do novo rumo da vida de Jéssica, o que sentimos de mais verdadeiro é que ainda há esperança para elas. Com atores talhados para cada personagem, diálogos burilados que parecem não terem sido escritos (apenas falados no ouvido de Anna) e personagens que parecem gente como a gente, Que Horas Ela Volta? é um filme provocante, emocionante e que representa todo o País. Vamos torcer para ele defender o Brasil no Oscar. 

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