A moça passa 28 dias longe e, quando retorna para casa, na cidade de Los Angeles, descobre, pela melhor amiga, que o amor que a unia ao seu suposto “príncipe encantado” não era forte o suficiente a ponto de resistir ao curto tempo somado à ausência. Começa, aí, o périplo da nossa heroína em busca de redenção, vingança e, claro, recuperar o noivo perdido, seduzido por uma rival.
A “missão” é completada, não sem várias reviravoltas, alguns risos e lágrimas que justificam para Tangerine o rótulo de comédia romântica. O filme, dirigido por Sean Baker (também escrito por ele, em parceria com Chris Bergoch), não atenderia às especificações do gênero se não contivesse, também, um pouco de drama. Tangerine entra em cartaz hoje, no Cinema do Museu.
O que separa Tangerine de uma exibição facilmente encaixável na sessão da tarde é o fato de a trama estar instalada no cenário e entre personagens da subcultura transgênera. É importante esclarecer, neste ponto, que o prefixo “sub” não é indicativo de inferioridade, senão uma vertente que se abriga no guarda-chuva mais amplo que é a cultura LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros).
A Los Angeles aqui retratada não é aquela das palmeiras majestosas e mansões colossais que hospedaram os dilemas românticos e de amizade entre Alicia Silverstone e Brittany Murphy, em As Patricinhas de Beverly Hills, mas as ruas planas e sem graça, pontuadas por pequenos pontos comerciais e de prostituição, além das sorumbáticas casas noturnas de West Hollywood e Boulevard Santa Monica.
Tampouco vemos representadas com frequência, nas exibições do circuito mais tradicional, as pessoas com as quais estaremos envolvidos na trama que segue. A noiva traída em questão é Sin-Dee Rella (incrível performance de Kitana Kiki Rodriguez), afastada da sociedade temporariamente por conta de um encarceramento por posse de drogas.
A amiga Alexandra (Mya Taylor), que acidentalmente entrega a fuleiragem do noivo – o elusivo Chester (James Ransone) –, é, assim como Sin-Dee, afrodescendente, transgênera e trabalhadora do sexo. O cavalheiro em disputa é, ao mesmo tempo, cafetão da amada e de sua concorrente.
O terceiro vértice do triângulo amoroso que se estabelece é Dinah (Mickey O’Hagan), prostituta como as colegas, mas loura, de pele muito branca e compleição tão frágil que parece prestes a quebrar, como o cachimbo de vidro usado com destreza para inalar os vapores da metanfetamina.
Dinah, ainda por cima, é cisgênero, ou seja, se identifica com o gênero que lhe foi destinado quando do seu nascimento. Como deixa claro o diálogo travado entre Sin-Dee e Alexandra, era só isso o que faltava para adicionar insulto à injúria sobre a traição de Chester. Repetidas vezes, para enfatizar sua contrariedade, Sin-Dee refere-se ao desafeto como “fish”, um vocábulo extremamente pejorativo no glossário transgênero para se referir à condição de mulher não-trans.
Tangerine, assim como a fruta-título, é um filme construído em camadas. É preciso ser descascado. Uma obra de arte contemporânea, no sentido de que tudo o que envolve a sua realização possibilita uma interpretação, que fatalmente gerará novos desdobramentos. E todos eles conduzirão a algum tipo de desbravamento. Do suporte – foi filmado em Iphone –, passando pelas atuações (Mya e Kiki são atrizes transgêneras e estreantes), às subtramas (a comunidade armênia e aspectos tabus à sexualidade dentro daquela cultura). Depois de tudo visto, resta a semente: Tangerine é um filme sobre o amor, a amizade, a lealdade. Sob as camadas, o núcleo da resistência.