“Ser bom fã não é só gostar de ir ao cinema. É preciso também saber ir ao cinema.” O tom da crônica de Vinicius de Moraes – sim, a sétima arte foi mais um dos interesses do insaciável poeta – mostra bem a sua aproximação dos filmes: com reverência, algum humor e, quase sempre, alguma polêmica. O volume O Cinema dos Meus Olhos (Companhia das Letras), organizado por Carlos Augusto Calil, revela a sua paixão (com erros e homenagens sinceras, como o próprio amor evocado tanta vezes por Vinicius) pelo tema.
Em sua terceira edição, a obra recebeu novo tratamento e foi ampliada. Ali, é possível ver o que Vinicius – que depois teria a peça Orfeu da Conceição adaptada para o cinema em Orfeu Negro – escreveu para impressos como A Manhã, Diário Carioca e Diretrizes, com crônicas, artigos e até mesmo esboços de críticas sobre o cinema brasileiro e mundial. As páginas da coletânea são um passeio pela sétima arte e seus debates nos anos 1940 e 1950, com papel de destaque para Carlitos – seu parâmetro máximo –, Orson Welles e Grande Otelo.
Vinicius começou sua relação com o cinema quando foi representante do departamento de censura em 1936. Como crítico, a partir de 1941, acompanhava com frequência os lançamentos, postando-se, por exemplo, como um defensor do “cinema silencioso” contra o cinema falado – achava que este último distorcia a pureza e a beleza da imagem em movimento, verdadeira natureza do cinema. O título do livro é bastante apropriado: Vinicius, antes de tudo, queria ver o cinema com os olhos e, se possível, só com eles. O volume acompanha o longo debate que travou com críticos nessa “luta por uma causa sem esperança”, como definiu Otto Maria Carpeaux. Até Manuel Bandeira entrou no imbróglio discordando do amigo poeta e comentando que ele idealizava a sétima arte como uma paixão: “Você ama o cinema mudo como se ama uma mulher... muda”.
Se o autor carioca lamentava que “Machado de Assis nunca chegou a ver um filme de Carlitos”, também criticava o padrão da indústria hollywoodiana ainda em 1941. Figura máxima do cinema de então, o produtor era para ele alguém com o papel de criar “a arte de ganhar dinheiro” e efetuar a “limitação progressiva da liberdade do diretor” – Vinicius ali esboçava a sua própria (e precária) teoria do autor no cinema, ressaltando a importância da direção.
Quando foi vice-cônsul em Los Angeles, de 1946 a 1951, o autor se aproximou ainda mais do mundo hollywoodiano. Orson Welles, com o seu Cidadão Kane, mereceu alguns dos maiores elogios de Vinicius. “É impossível imaginar o que esse homem não será capaz de fazer em cinema”, vaticinou. Quando Welles veio ao Brasil, os dois se tornaram amigos: “Sobretudo encantou-me a sua esperteza, a malícia que a espontaneidade lhe assegura, o dote de uma autocrítica bem-humorada”. Era um diretor “longe da perfeição”, mas que “às vezes chega a tocar com o dedo no coração do mundo”.
Acima do amigo americano, só havia espaço para Chaplin, afinal, Vinicius foi um dos componentes do Chaplin Club. O poeta sentia Carlitos “no que há de afetuoso nas coisas e nas criaturas”; descrevia-o como um “antigrão-fino”, um homem que “nunca agride, sempre se defende”. Até se permite imaginar Chaplin morando no Brasil, sendo desprezado como um vagabundo chato, que importuna os outros. Mas o que lhe importa é o amor ao diretor e ao personagem. Tanto que, ao ver Luzes da Cidade, conclama em uma crônica poética: “Vós, que amais a mulher nas suas algemas (...) Vós, homens que não sabeis mais amar – ide ver amar Carlitos”.
As musas do cinema são outro tema recorrente – algumas de suas crônicas deixam de ser sobre o filme e passam a ser sobre protagonista como Joan Crawford. Sua paixão por Marlene Dietrich lhe rende até uma carta-crônica direcionada a Carlos Drummond de Andrade. Os dois, como diz Carlos Augusto Calil, têm visões opostas de beleza: Drummond prezava pela Garbo quase imaterial; Vinicius queria a Marlene carnal, que deixou suas pernas bambas na primeira aparição.
Com o cinema brasileiro, Vinicius tinha certa paciência programática – defendia a necessidade de criar uma história da sétima arte nacional e, quando tecia críticas, buscava ainda assim incentivar a produção. Um dos que recebem seus elogios é o ator Grande Otelo, dono de “uma bossa fantástica para representar” e apontado, segundo o poetinha, como o maior ator da América Latina segundo Orson Welles. Na paixão idealizada pela sétima arte, no bom humor até para “brigar” com Drummond e nos relatos de bastidores, Vinicius sempre tentou mostrar a poesia que seus olhos terminavam encontrando nas telas dos cinemas.