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A febre de celuloide do Super 8 em Pernambuco

Arquivo Público promove mostra de Super 8 em homenagem a Geneton Moraes Neto

Marcelo Pereira
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Marcelo Pereira
Publicado em 06/12/2016 às 10:02
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Arquivo Público promove mostra de Super 8 em homenagem a Geneton Moraes Neto - FOTO: Facebook/Divulgação
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A Jomard Muniz de Britto, Alexandre Figueiroa e Geneton Moraes Neto (in memoriam)

Foi de repente. O sonho de fazer um filme com poucos recursos voltou a ser realidade na capital pernambucana meio século depois do surgimento do pioneiro Ciclo do Recife da década de 1920, na era do cinema mudo. A popularização da bitola Super 8 com banda sonora, em 1973, tornou-se uma febre em celuloide que contaminou toda uma geração durante uma década, com produções que realizou um cinema alternativo, experimental e marginal.

 “Arranje uma câmara, reúna a turma, vá para a rua. A transa é filmar” – escreveu o jovem jornalista Geneton Moraes Neto, um dos maiores entusiastas do Ciclo do Super 8, para quem “os fatos mais aparentemente comuns” poderiam “ser transformados em filme”. Seu verbo ecoava no poeta maldito piauiense Torquato Neto, que em sua Geleia Geral godardiana provocava: “Invente. Uma câmara na mão. O Brasil no olho. Documente isso amizade”.

Para se tornar cineasta, mais do que uma ideia na cabeça bastava ter acesso a um equipamento portátil e leve: uma câmara, alguns cartuchos de filmes e um pequeno projetor – numa analogia, como são hoje em dia as câmeras digitais, os smartphone e os tablets. Feito o registro em película, mandava-se para a revelação (pelo menos 16 vezes mais barata se comparadas aos altos custos do 16mm e 35 mm que inviabilizavam os projetos). Era na montagem na moviola que nascia “o filme”, pois em muitos dos casos não havia um roteiro previamente elaborado. Bastava apenas o argumento e o desejo de filmar.

Muita gente que adquiriu as primeiras filmadoras e projetores de Super 8 visavam o lazer doméstico. Seus motivos eram prosaicos, de diletantes da classe média: registrar o nascimento de um filho, uma festa de aniversário ou casamento em família, as paisagens de uma viagem, uma manifestação cultural de sua preferência, seja o Carnaval de Olinda, uma briga de galo um folguedo popular. Mas havia quem almejasse fazer mais: fazer cinema com todos os seus recursos de linguagem.

Os documentários da cultura rural nordestina, as ficções de denúncias às injustiças sociais, os filmes experimentais voltados para a crítica da cultura e os temas existenciais urbanos foram as principais temáticas abordadas pelos cineastas em seus filmes de curta-metragem, elencadas pelo jornalista, crítico de cinema e professor Alexandre Figueiroa, em sua dissertação de mestrado O cinema Super 8 em Pernambuco: do lazer doméstico à resistência cultural, apresentada à Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP).

O Ciclo do Super 8 em Pernambuco foi pródigo, em que pese a precariedade do equipamento e as deficiências técnicas que marcaram parte da produção do período. Os filmes revelavam-se amadores, toscos, por mais esforço e assistência que desse o cinegrafista e montador Lima e de Carlos Cordeiro, dois dos mais requisitados pelos superoitistas amadores. Se não conseguia atingir o resultado do cinema profissional comercial, foi, contudo, em seus melhores exemplos, um cinema de resistência, de experimentação e documentalmente relevante.

Há quem fale em 150, outros contabilizam 200 filmes realizados desde as primeiras experiências dos irmãos Ulysses e Frederico Pernambucano de Mello sobre o cangaço, os filmes de Kátia Mesel sobre suas andanças pelo norte África e da Europa, com os cantores e compositores Lula Côrtes e Flaviola, à crítica à televisão e o filme turístico sobre Fernando de Noronha pelos militares Athos Eichler e Osman Godoy, o registro documental da Missa do Vaqueiro feita por Hugo Caldas, e a adaptação ficcional do conto A Continuidade dos Parques, de Cortázar, em Labirinto, por Fernando Spencer.

Três dos maiores entusiastas e divulgadores do Super 8 em Pernambuco foram também realizadores: os jornalistas Geneton Moraes Neto, Fernando Spencer e Celso Marconi, que utilizavam as páginas dos jornais diários do Recife onde trabalhavam para divulgar e comentar os filmes, jornadas e festivais e abrir discussões sobre a movimentação superoitista recifense. A eles se juntam três dos principais cineastas autorais do ciclo: Jomard Muniz de Britto, Paulo Bruscky e  Amin Stepple (também jornalista).

Fernando Spencer tornou-se o grande documentarista pernambucano das décadas de 1970 a 1990. Adotando cada vez mais o profissionalismo em suas produções, realizou trabalhos em Super 8, 16mm e 35mm. Sua preocupação principal era fazer o registro dos artistas e manifestações culturais e periféricas.  Entre seus principais filmes do Ciclo do Super 8 estão o premiado Valente é o Galo (sobre a violência nas rinhas de briga de galo), Bajado – Um Artista de Olinda (sobre o pintor naïf olindense).

Celso Marconi pode-se dizer que foi um verdadeiro ativista da imprensa, que não escondia seu otimismo quanto ao futuro da bitola Super 8 e seu engajamento contra o cinema hegemônico hollywodiano. Com a câmara na mão fez um cinema com três vertentes: a antropológica, onde o foco estava na religião e na arte popular; a naturalista, com um olhar curioso sobre o objeto filmado; e a experimental, de expressão poética e engajada politicamente. Entre seus títulos destacam-se Morro da Conceição, Dona Betinha e Ana das Carrancas, Corbiniano Lins, a Brigada Portinari e Recife 0Km (sobre a degradação do Recife Antigo).

Geneton Moraes Neto, no início, pregava o “faça você mesmo” como política para o superoitista, não se importando muito com a qualidade final do filme realizado. Com o tempo, ele passou a se preocupar mais estetica e formalmente com seus filmes que iam desde o panfleto em favor do futebol Esses 11 aí (em parceria com Paulo Cunha), numa época em que a esquerda o considerava como ópio do povo ao filme-poema A flor do lácio é vadia, sobre o colonialismo cultural, declamado por Jomard Muniz de Britto diante das ruínas do Forte Orange, em Itamaracá e Funeral de uma década em brancas nuvens, na qual compara a repressão militar e o vazio cultural da década de 1970 comprando-a com a efervescência dos anos 1960.

Jomard Muniz  de Britto foi talvez o maior agitador do ciclo dos Super 8. Provocador, ele além de produzir e atuar, ele também percorria espaços culturais para exibir e debater seus filmes. Em O palhaço degolado, ele vocifera contra o patriarcalismo do sociólogo Gilberto Freyre e sobre o projeto estético Armorial de Ariano Suassuna, numa crítica ao pensamento oficial vigente, ao mesmo tempo também que disparava contra as vanguardas nacionais e internacionais. Freyre voltaria a ser alvo de Jomard em Inventário de um feudalismo cultural, que ele fez com o grupo teatral Vivencial Diverciones, citando trechos de Sobrados e mocambos e também do dramaturgo e contista Hermilo Borba Filho.

PIONEIRISMO

A sexualidade foi uma das preocupações da obra jomardiana, no curtas Infernolento, inspirado na tragédia grega Prometeu acorrentado, considerado o primeiro filme erótico de Pernambuco, com os atores fazendo exercícios corporais ao ar livre próximo a igreja. Babalorixá Mário Miranda, Maria Aparecida no Carnaval é definido como um ensaio de androginia. Já Noturno em Ré(cife) traz o ator e diretor Antonio Cadengue como um vampiro bissexual.

De Amin Stepple vale citar três curtas em Super 8: Creuzinha não é mais a tua, debochado filme com “estética de lambe-lambe e safadezas em geral” e o político Tempo nublado, que teve o destemor de atacar a censura e a ditadura militar de forma panfletária, pregando à luta armada.

Paulo Bruscky é o mais radical dos superoitistas pernambucanos. Desde seus primeiros trabalhos, sua preocupação é muito mais estética, experimental e performática, utilizando o cinema como registro de sua atitude política. Ele se vincula aos filmes de artista e se destaca na realização de xerofilmes. Bruscky trabalha com signos verbais e experimentações, como em Artexpocorponte. Em Xerozperformance ele utiliza sua experiência com faxarte, artepostal e xeroarte. Ele faz reproduções de seu rosto e filma a posteriori as imagens, para em seguida montá-las.  Em LMNUWZ, Fogo sua proposta radicaliza. Ele toca fogo em chumaços de algodão embebidos de álcool e aciona a máquina, filmando todo o processo.

Cinema de resistência e vanguarda. a maior utopia de quem fez Super 8 em Pernambuco foi um dia sonhar que a bitola poderia se tornar viável profissional e economicamente, disputando o mercado comercial, dominando pelo cinema americano e as chanchadas. Chegou-se na época a vislumbrar a possibilidade de os curtas-metragens sempre incluídos na programação das televisões (todas de canal aberto) e serem exibidos dentro da cota de reserva de mercado dos cinemas.

Sem mercado exibidor, o Super 8 só encontraria público em festivais, jornadas e mostras de cinema. Havia pouco incentivo à produção e quando havia era resultante de prêmios ou algum incentivo oficial, que muitos cineastas rejeitavam por questões ideológicas, pois não queriam aproximação com a ditadura militar em vigor. Assim, o mais comum eram os cineastas bancarem suas próprias produções, sem pensar em retorno, pois raramente algum filme obtinha alguma receita de bilheteria

 

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