Já se foram 50 anos desde que George Romero deu vida aos que partiram no célebre A Noite dos Mortos-Vivos, impulsionando o que conhecemos hoje como "filme de zumbi". Romero venceu as barreiras do baixo orçamento para trazer a história de um grupo de pessoas presas em uma casa no campo enquanto estranhas criaturas perambulam atrás de carne humana. Chegaram sequências e os olhos cresceram em cima das produções com mortos-vivos, culminando em séries de televisão de sucesso, paródias, franquias e games. Entretanto, se os grunhidos dos zumbis permanecem semelhantes nas diversas produções, os países em que rastejam ou correm acabaram por serem expandidos, em obras que ultrapassam as fronteiras da produção norte-americana e se destacaram nos últimos anos.
É de um dos mais tradicionais países produtores de cinema do mundo que vem um dos últimos destaque do gênero. O francês Dominique Rocher fez Paris ser tomada pelos mortos-vivos em seu A Noite Devorou o Mundo, exibido no Festival Varilux e com estreia comercial marcada ainda para este ano. Estamos falando de um filme de zumbi cuja melhor qualidade não é a megalomania envolvendo correrias e carnificinas típicas do subgênero, mas uma jornada introspectiva reveladora da condição humana em isolamento social. Um prisma psicológico que expressa um diferenciado fôlego para possíveis novos rumos do terror.
Nele, acompanhamos Sam, jovem que certa noite vai buscar fitas deixadas no apartamento de um ex-interesse romântico, onde acontece uma festa. Lá, ele acaba adormecendo e acorda no devastado cenário tomado pelos mortos-vivos, iniciando sua jornada de sobrevivência restrita basicamente ao imóvel em que se encontra, explorando outros apartamentos em busca de mantimentos e ferramentas.
Por mais que contenha episódios de violência gráfica e sufocantes momentos de ação, A Noite Devorou o Mundo é muito mais um filme sobre a solidão, muito bem refletido em sua estética que tende ao minimalismo. Toda a trama é pontuada por raros diálogos e intervenções de trilhas sonoras, a maioria dos sons que escutamos tem suas fontes dentro da narrativa, os chamados sons diegéticos. Dessa forma, Rocher eleva a inércia e a solitude de Sam naquele mundo, trazendo seu desespero por qualquer tipo de comunicação com outros seres, mesmo que isso traga riscos à sua sobrevivência, além de conseguir construir narrativas sobre as pessoas que existiam antes do apocalipse através de objetos deixados para trás.
Os mortos-vivos da Espanha
Já nossa língua irmã trouxe uma franquia de sucesso dentro do gênero, com direito a remake em Hollywood. Trata-se do espanhol REC, lançado em 2008, que já conta com quatro volumes. O filme é dirigido pela dupla Jaume Balagueró e Paco Plaza e se utiliza da ferramenta narrativa do found-footage, em que a filmagem simula uma gravação real, popularizada por obras com A Bruxa de Blair e, mais recentemente, Atividade Paranormal.
No primeiro filme da franquia, acompanhamos uma repórter e um cinegrafista que passarão um dia cobrindo as atividades do Corpo de Bombeiros local, designado para salvar uma senhora supostamente presa em seu apartamento. Ao chegar lá, encontram os habitantes contaminados por uma doença que os deixa agressivos e raivosos. O prédio acaba ficando em quarentena e a equipe decide filmar toda a ação no prédio, enquanto lutam para sobreviver.
O estilo de filmagem funciona bem, fazendo um found-footage com maior dinâmica e agilidade do que os exemplares oferecidos até então – um ano depois, era lançado Cloverfield, que fez algo parecido – tudo sem deixar o espectador perdido, pelo menos não nos momentos em que ele não deveria ficar. Convenceu e vingou, arrecadando cerca de US$ 32 milhões e gerando uma franquia de quatro filmes, o último lançado em 2014. E como boa aproveitadora do sucesso que é, Hollywood logo encomendou sua refilmagem, intitulada Quarentena, protagonizada por Jennifer Carpenter.
Os mortos-vivos coreanos
Indo ao Oriente, também encontramos mortos-vivos, um dos mais frenéticos filmes dos últimos anos. Seu título em português, Invasão Zumbi, não faz jus à energia criativa deste exemplar sul-coreano – o título original é Trem para Busan, em tradução livre. Aqui, saímos das estruturas fixas de um imóvel, como nos apresentados anteriormente, e temos a ação situada em um veloz trem. Infestado de agressivos seres putrefatos, claro. Na trama, acompanhamos um omisso pai que decide levar sua filha até a mãe em outra cidade, naquilo que seria uma relativamente curta viagem de trem, até uma misteriosa doença atacar a região, transformando os cidadãos nas já conhecidas criaturas.
Invasão Zumbi ganha sua força ao conseguir equilibrar o ritmo veloz com a capacidade de desenvolver decentemente seus personagens, fazendo com que o espectador não os enxergue como meras iscas no meio da carnificina. Seus arcos dramáticos vão de relacionamentos paternais, conjugais, fraternos e corporativos e, mesmo que uma pessoa ou outra soe caricata, estamos diante de um elenco bem palpável em seus conflitos, dos mais internos aos externos, que se põe na ameaça dos zumbis.
É dessa ameaça que vem o ritmo bem cadenciado da ação, trazendo momentos que lembram a estrutura narrativa de videogames, em que vagões e estações se apresentam como as diferentes fases de um jogo e cada uma pede uma estratégia diferenciada para ser superada. A potencialização disso vem na concepção dos seres infectados. Por um lado, eles são extremamente agressivos e velozes, levando em conta o curto tempo entre uma mordida e a total contaminação, que as converte nas horrendas criaturas. Entretanto, o roteiro inteligentemente os dá alguns pontos fracos em relação à percepção do ambiente em volta, criando uma necessidade criativa para os heróis se salvarem.
Sangua, gosma e tripas à brasileira
Zumbis tupiniquins também vêm dando as putrefatas caras nos últimos anos, com obras que se destacam dentro do cenário underground ao passar por cima das dificuldades técnicas da produção de baixo orçamento no país. Rodrigo Aragão, capixaba, e Rodrigo de Oliveira, mineiro, são dois nomes que trabalharam bem seus filmes em cima dos mortos-vivos. O primeiro lançou seu filme de estreia dentro da temática em 2008, intitulado Mangue Negro, e um segundo chamado Mar Negro, em 2013. O outro, ainda com pouca idade, teve seu projeto nascido de uma brincadeira, fruto da vontade de aprender técnicas cinematográficas, lançando assim Era dos Mortos em 2006 e dando os primeiros passos na carreira audiovisual.
As produções, dentro do já citado contexto de baixo orçamento, acabam por se distanciar dos megalomaníacos moldes hollywoodianos. O estúdio de Mangue Negro, um terror sobre um ataque de zumbi em uma comunidade de pescadores, é o quintal da casa de Rodrigo Aragão, com cenários construídos a mão. O vencimento desses desafios impostos acabam por trazer um frescor em sua estética, com identidade própria. "Eu sou técnico de efeitos especiais e trabalho com maquiagem desde 1994, quando tinha 16 anos, assim optei por efeitos especiais com marionetes, máscaras, próteses, evitando ao máximo efeitos digitais. Isso é muito importante para mim, para dar um tom original no meio dessa onda de filmes de zumbi", explica Rodrigo.
Já Brandão contava com um número limitado de vários elementos em sua produção, do dinheiro à equipe. Sua formação é em Sistema de Informação, mas sua paixão pelo audiovisual o levou para os caminhos que culminou em Era dos Mortos, deslanchando sua carreira na área. "Rodamos em 2006 e, na época, toda a equipe tinha menos de 20 anos. O orçamento era zero, mas o tempo disponível e a vontade eram grandes. Éramos um núcleo de quatro amigos, que produziu tudo, desde a pré até a pós-produção. Está na tela o quanto foi divertido e como estávamos felizes em fazê-lo", afirma.
As influências e o gosto por zumbis vêm de várias fontes, de diferente países e até de diferentes mídias. Aragão se diz abismado pelas obras do mestre italiano Lucio Fulci, principalmente a obra Zumbi 2, a primeira a adotar o aspecto putrefato nas criaturas. Outros nomes citados são o norte-americano Sam Raimi, com o seu A Morte do Demônio (Evil Dead) e Peter Jackson, com Fome Animal. Seu deslumbramento vem também de fenômenos químicos. “Zumbis são fascinantes, primeiramente por causa do processo de decomposição, como um ser vivo pode voltar a um estado de pó. Pensar em alguém que sofre um processo de decomposição ainda 'vivo', é algo fascinante, é um monstro admirável", explica.
Ambos acreditam que há um amadurecimento nos filmes nacionais do gênero, que ainda contam com o vigor imposto por suas limitações. "Sinto que o público que consome esses filmes também amadureceu e está levando o mercado a entender que filme de gênero brasileiro pode dar dinheiro e que é época de colocarmos uma bandeira neste território", diz Brandão.
Aragão pôde experienciar também caminhos sendo abertos para as produções. Seus filmes já circularam por mais de 80 festivais, ainda se encontrando disponível em DVDs em on-demand em mais de 100 países. Para ele, o maior desafio é encontrar os rumos do terror para as salas brasileiras de cinema. Seu mais novo trabalho, Mata Negra, pode ser um bom exemplar desta situação, já que estreia em circuito comercial no final do ano. Os zumbis podem entrar nessa caminhada também, precisando comprovar originalidade e, segundo Aragão, aquilo que se faz essencial nessas obras: "bons efeitos especiais, boas maquiagens, situações de tensão e viradas e, principalmente, sangue, gosma e tripas"