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Otto Guerra mergulha na obra de Laerte no longa 'Cidade dos Piratas'

A animação, que tem quase 20 anos de produção, vai passar no Recife dentro do Animage, em outubro

Diogo Guedes
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Publicado em 21/08/2018 às 8:26
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A animação, que tem quase 20 anos de produção, vai passar no Recife dentro do Animage, em outubro - FOTO: Divulgação
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A ideia do projeto foi registrada na Biblioteca Nacional em 1993. Em 2002, nasceu a primeira versão em roteiro, focando-se na saga dos icônicos e sanguinários Piratas do Tietê, que vêm retomar o controle de São Paulo após o fim do período de aluguel para os portugueses: 500 anos. No entanto, já ali Laerte, a criadora dos personagens, começava a mergulhar em uma crise em relação à própria obra (e à própria vida, abandonando personagens que a consagraram e o humor corriqueiro das tirinhas de jornal. Fazer um filme só dos Piratas do Tietê, as “múmias machistas”, na descrição da própria Laerte de hoje, não fazia muito sentido.

O diretor gaúcho Otto Guerra, um dos maiores veteranos da animação brasileira, precisou de 10 versões do roteiro e quase 20 anos para concluir o longa Cidade dos Piratas. A obra, “baseada em fatos surreais”, como ele define, é o primeiro longa confirmado na programação da 9ª edição do Festival Internacional de Animação de Pernambuco (Animage), que acontece no Recife entre 12 e 21 de outubro.

Otto já trabalhou com adaptação de quadrinhos antes, mexendo no universo nada comportado de Adão Iturrusgarai, em Rocky & Hudson – Os Caubóis Gays (1994), e de Angeli, em Wood & Stock: Sexo, Orégano e Rock'n'Roll (2006). Com Laerte, no entanto, o filme chegou a um impasse. A solução do diretor, então, foi a mais autêntica possível: “piratear” o filme sobre os Piratas, ou seja, transformá-lo em outra coisa sem descaracterizá-lo completamente.

Assim, Cidade dos Piratas começa originalmente como era previsto: com o encontro dos bandeirantes com os índios e o personagem do Capitão. Logo a própria Laerte aparece em cena para descartar o pirata – como fez na vida real. “Eu parei de usar os meus personagens como um todo, eu parei de fazer piadas naquele modelo humorístico que eu usava”, diz ela. O impasse ocupa a própria tela do filme. Assim, o longa começa a alternar, em um caos bem pensado, uma série de histórias de Laerte, sempre animadas com maestria.

“Durante a produção de filme, Laerte mudou muito, mas principalmente mudou o seu trabalho, mergulhou em um humor transcendental. É genial. Queríamos aproveitar essa nova faceta dela, seu humor engajado, despojado e que trata de assuntos atuais, como política e gênero”, explica Otto.

Figuras conhecidas dos fãs antigos de Laerte, como o Overman, aparecem rapidamente nas cenas, junto com a presença frequente do Capitão, transformado em um alter-ego do próprio Otto. A maior parte do filme, no entanto, é ocupada pelas histórias mais poéticas de Laerte, frutos de uma busca inconstante por não se conformar no mesmo traço, nos mesmos temas e no mesmo humor. Em um dos arcos narrativos, um político conservador, Azevedo, quer caçar um minotauro, a quem culpa pelos males do mundo. “Com o minotauro solto, eu é que me sinto preso”, diz o político, cada vez mais atormentado pelo próprio ódio. “Esse formato de filme labiríntico não me é estranho, até porque meus roteiros nunca são muito dentro do padrão”, brinca Otto.

O filme aborda a identidade trans e tardia de Laerte, que em vários momentos traz o assunto para suas histórias, como militância, humor e arte. Mais do que Laerte, o próprio Otto é um personagem fundamental do filme: retratando-se ironicamente, nos moldes de Crumb, ele fala da dificuldade de fazer o filme e de um câncer que enfrentou durante a produção da obra.

“No meio da produção da obra, em 2013, eu fui diagnosticado com câncer em metástase. De certa forma, isso meu deu mais coragem de chutar o balde e fazer o filme como eu quisesse. Para o filme, tudo isso foi bom. A Marta, produtora, por exemplo, se demitiu porque ficou brava com as muitas mudanças de roteiro e terminou virando uma personagem (ela adorou depois)”, relata o diretor.

Como o longa cresceu a partir dos questionamentos do dois criadores, Laerte e Otto, a quadrinista terminou se tornando personagem – inclusive, com cenas de entrevistas suas para a TV. A mãe dos Piratas do Tietê, no entanto, é sempre um pouco avessa a se ver definida em narrativas e imagens. “Não é simples. Ela não gostou de aparecer tanto e, no final, eu cortei 50% das cenas com ela. Tudo porque Laerte é uma pessoa complexa, que não faz nada com hipocrisia”, comenta o diretor.

LIBERDADE

Apesar de ter “chutado o balde” em Cidade dos Piratas, Otto nunca foi mesmo um criador engomadinho – claro, ninguém que adapta o universo de Angeli ou Adão poderia ser. “Os longas nunca tiveram grandes freios ou deixaram de ter o meu espírito. Eu sou esquizofrênico, comigo os sentidos das coisas sempre vão para muitos lados. Nesse eu só tive mais coragem de assumir tudo isso. Eu me dei mais liberdade mesmo. Mas todos os meus filmes têm o espírito da produtora, algo de anárquico”, comenta Otto, que celebra em 2018 os 40 anos de trajetória.
Após viver várias fazes na animação nacional, ele aponta o período atual como excelente. “Nunca pensei em viver uma época tão fértil, fecunda, com tanta liberdade. O problema é que temos um golpe disfarçado de impeachment, a situação está horrível no momento. É preocupante, porque a cultura não interessa para eles. Nesse sentido, é um momento horroroso”, opina o diretor.
Prestes a exibir Cidade dos Piratas em Gramado – a sessão é na sexta –, Otto está cuidando também de diversos outros projetos. A sua produtora, a Otto Desenhos Animados, está finalizando a série Os Filosofinhos, que traz o pensamentos de autores como Nietzsche para crianças, através dos personagens de Joana e Martim e seu avô, Felix. Outra novidade é que o filme Rocky e Hudson, baseado nos caubóis gays criados pelo cartunista Adão, vai ser o mote para uma série, a ser exibida no Canal Brasil. Serão 13 episódios, com 7 minutos cada.

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