RIO DE JANEIRO – “Todo mundo que está sentado aqui sabe que o mecanismo são todos eles. Entre as condições necessárias que alguém tem que satisfazer para chegar à Presidência da República no Brasil é estar/participar do mecanismo, se não você não consegue. É uma seleção natural contrária: selecionamos os piores”: Foi assim que o diretor José Padilha resumiu aos jornalistas durante uma coletiva de imprensa um pouco do sentimento que está imerso na série O Mecanismo, que chega hoje em sua segunda temporada na Netflix, abordando os bastidores da polêmica Operação Lava Jato.
Na nova leva de oito episódios, o seriado está no ano de 2014. Após as eleições presidenciais, a força-tarefa liderada por Verena prendeu 12 dos 13 principais empreiteiros do Brasil. Ainda faltava um, o maior de todos: Ricardo Brecht (Emilio Orciollo Netto). Verena (Caroline Abras), Guilhome (Osvaldo Mil) e Vander (Jonathan Haagensen) permanecem envolvidos em suas investigações, bem como Ruffo (Selton Mello): o policial aposentado ainda está agindo fora da lei e, implacável em sua busca por Ibrahim (Enrique Diaz), cada vez mais afastado de sua esposa Regina (Susana Ribeiro) e da filha Beta (Julia Svaccinna).
O drama familiar de Marco Ruffo ganha um pouco mais de destaque nesta temporada, ainda que ele não deixe de investigar as movimentações ilegais por conta própria. Mas para Selton Mello, fazer O Mecanismo teve um quê de confirmação de sua natureza anti-política.
“Eu nunca fui um ativista político, não entendo de política. [...] Não me sinto representado por nenhuma linha partidária, não gosto de nada disso. Quis o destino que caísse na minha mão um Zé Padilha, com uma série de alto teor político, e o meu primeiro movimento foi não aceitar fazer isso. Mas depois vi uma chance de mexer em lugares que eu desconheço, é uma zona de conforto. [...] Esse trabalho foi muito doloroso, desconfortável, desagradável na maioria das vezes, mas foi assim que construí o Ruffo, nesse estado. E eu agradeci ao Padilha por ter feito, porque experimentei uma coisa diferente, e ‘a casca’ deu uma engrossada”, confessou o veterano ator de 46 anos.
Com um roteiro afiado e bastante verossímil para quem acompanhou os noticiários políticos, o texto da série, assinado por Elena Soarez, chama bastante atenção. “Temos personagens muito bem desenhados em O Mecanismo em termos de dramaturgia. E às vezes, temos indicações que parecem tanto a vida, que parece que o ator inventou, mas simplesmente, está ali, no texto”, explicou Enrique Diaz, que interpreta o doleiro Roberto Ibrahim.
Para Caroline Abras, que dá vida à delegada Verena Cardoni, O Mecanismo provoca não só a reflexão, mas a empatia do espectador. “É uma série bem colorida nesse sentido ao reunir pessoas que pensam de diferentes formas, de diferentes ideologias. O Mecanismo veio num momento muito oportuno para fazer essa reflexão”, definiu.
MENOS HEROÍSMO, MAIS HUMANIDADE
O Jornal do Commercio teve acesso aos oito episódios da segunda temporada de O Mecanismo e é perceptível uma sensível mudança no tom da série dirigida por José Padilha.
Diferente da primeira, em que a abordagem chamou atenção do público por defender apenas um lado da história ao colocar o personagem do Juiz Paulo Rigo – inspirado no atual ministro Sérgio Moro – como um “justiceiro”, agora, o personagem de Otto Jr. está menos heroico e mais humano. O roteiro dá margem a uma dualidade da índole do juiz que serviu de inspiração para toda a trama, já que O Mecanismo é baseado no livro Lava Jato – O Juiz Sérgio Moro e os Bastidores da Operação Que Abalou o Brasil (Primeira Pessoa, 2016), de Vladimir Netto.
A qualidade da produção da série chama bastante atenção, bem como as boas atuações de Caroline Abras, como a delegada Verena, e Enrique Diaz, que propicia os (quase imperceptíveis) alívios cômicos de toda a tensão do seriado. Jonathan Haagensen como o policial Vander também convence ao colocar sua ética em jogo em prol da justiça.
Mas o maior destaque desta segunda temporada talvez seja o trabalho de Emilio Orciollo Netto como o empreiteiro Ricardo Brecht. Ao compor um personagem metódico e sociopata, a entrega do ator ao personagem impressiona toda vez que ele entra em cena, com destaques para o seu primeiro depoimento à justiça – onde ele mesmo elaborou suas perguntas e respostas – e um surto com o seu pai na prisão.
Rever situações e diálogos que se tornaram “clássicos” da política brasileira na boca do elenco de O Mecanismo propicia ao espectador um mix de emoções. Mesmo sendo uma obra ficcional, baseada em fatos reais, chega a ser cômico se não fosse trágico pensar que tudo aquilo aconteceu de verdade, mas que nunca saberemos quem, de fato, está sendo honesto.
O fato é que esta segunda temporada do seriado tenta ampliar o seu leque de acusações. A série original da Netflix consegue, desta vez, deixar bem claro que todos os lados estão envolvidos neste vil processo de afundar o País em corrupção.
Dói pensar que tudo isso que a obra aborda, infelizmente, não é de hoje. E isso fica claro na nova abertura, onde políticos, de todas as épocas pós-diretas, estão ilustrados com seus olhos ou sorrisos pixelizados ao som do pegajoso refrão “Se gritar pega ladrão/ Não fica um, meu irmão”.
Ao atirar, de forma mais equilibrada, para todos os lados, O Mecanismo cumpre seu papel de levar a reflexão de como parte da política brasileira segue doentia e, infelizmente, sem nenhuma chance de recuperação a curto prazo.
*O repórter viajou a convite da Netflix Brasil