O inglês Sir Thomas Browne, em algum lugar do século 17, fez a seguinte afirmação acerca do desconhecido: “Que canção cantavam as sereias, ou que nome adotou Aquiles quando se escondeu entre as mulheres são perguntas que, embora de difícil resposta, não estão além de toda suposição”. O trecho, apesar das centenas de anos de distância, traduz um período decisivo para o reconhecimento de Fernando Pessoa como um dos maiores poetas da língua portuguesa.
Quando morreu, em 1935, aos 47 anos, ele só havia assinado um livro de versos, Mensagem, e alguns poemas publicados em jornais. Foi uma arca de madeira deixada pelo poeta, com mais de 25 mil papéis em seu interior, que começou a dar ao mundo uma dimensão autêntica de seu legado literário. O achado muniu os estudiosos de ferramentas para se aproximarem cada vez mais de informações sólidas, e menos suposições, a respeito da vastidão da obra – e das personas – do português.
Parte dessas raridades, entre manuscritos, documentos e fotografias, está reunida na luxuosa Fotobiografia de Fernando Pessoa (Companhia das Letras, 264 páginas, R$ 67), com texto do americano Richard Zenith, especialista em Pessoa, e organização do português Joaquim Vieira. Mais de 400 imagens narram a trajetória do poeta e de sua família, presenteando os leitores com preciosidades que ilustram o imaginário acerca do escritor.
INFÂNCIA
O mergulho no universo de Pessoa foi profundo. Além do acervo da arca, os autores vasculharam arquivos em Lisboa, onde ele passou a maior parte da vida, e em Durban, na África do Sul, onde viveu dos sete aos 17 anos. Apesar de o período em território sul-africano estar quase inteiramente ausente em sua obra poética, e mesmo nas conversas entre amigos, Zenith afirma que os dez anos vividos na colônia inglesa foram essenciais para a formação erudita de Pessoa, onde cursou o ensino básico na conceituada Durban High School.
Da escola, os autores trazem boletins da época, comprovando sua excelência em linguagens e ciências, sempre com elogios por escrito do diretor. Nas atividades físicas, porém, o intelectual não demonstrava a mesma aptidão e entusiasmo que tinha no latim.
Entre as raridades, está o registro do que se conhece como a primeira personagem inventada por Pessoa: o amigo de infância Chevalier de Pas. No caderno de aniversários da mãe, Maria Madalena, o menino de sete anos assinou o nome do companheiro, já com uma data de nascimento.
Desta época, data também um bilhete de Fernando dirigido à mãe, onde dizia que, ao contrário do que a matriarca imaginava, ele era a favor de mudar-se com ela e o padrasto para Durban. Muito certo do que queria, versou quatro linhas que acabaram por convencê-la: À minha querida mamã. Eis-me aqui em Portugal/ nas terras onde eu nasci. Por muito que goste delas/ ainda gosto mais de ti. Em papel de carta pardo, estava fincado o primeiro poema.
PESSOAS
“Diz-se, por vezes, que os quatro maiores poetas portugueses do século 20 são Fernando Pessoa”. A afirmação do pesquisador Richard Zenith pode soar insólita para quem desconhece os heterônimos Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Alberto Caeiro, que, juntos a seu criador, formam o “quarteto assombroso” da poesia portuguesa. Os três, no entanto, são apenas as principais personas de um total que ultrapassa duas centenas de personalidades, até então descobertas, com vidas, vícios e obras distintas. Os mais importantes ganhavam, além de uma obra aclamada, assinaturas e mapas astrais, como consta na fotobiografia.
O trabalho de Richard Zenith e Joaquim Vieira também funciona como um registro visual do desassossego de Pessoa. Insatisfeito com a vida única que lhe foi delegada – ainda mais aportado nas monótonas ruas lisboetas –, foi além. A fúria dos milhares de papéis rabiscados dão a tônica do seu desejo, e concretização, de transcender-se em outros. Como relatou: “Viver não é necessário; o que é necessário é criar. Não conto em gozar a vida, só quero torná-la grande, de toda a humanidade; ainda que para isso tenha de a perder como minha” – admitindo, assim, que abriu mão de viver sua “vidinha mais ou menos” para dar intensidade às várias vidas inventadas. Fica mais do que evidente para o leitor, ao somar a obra escrita já conhecida a essas raridades gráficas, que a alma de Pessoa, longe de ser pequena, era muitas.
Leia a matéria completa no JC deste domingo (1º), no Caderno C