“Quando se sonha tão grande a realidade aprende”, pensa, em dado momento, o personagem Crisóstomo. Talvez seja isso de que se trata O filho de mil homens (Cosac Naify. 256 páginas, R$ 39), de uma tentativa do escritor Valter Hugo Mãe de criar a partir da literatura a própria felicidade. O livro, que é publicado aqui no Brasil ao mesmo tempo em que o seu romance de estreia, o nosso reino, sai por outra editora, marca uma nova fase do autor, que abandonou as maiúsculas e também optou por um texto mais esperançoso, redentor, ainda que reconheça o terreno espinhoso da realidade.
O pescador Crisóstomo, protagonista da obra, apenas um homem pela metade. De repente, aos 40 anos, como o próprio Hugo Mãe, olha para o passado, de amores falhados, e se vê sem um filho – como pensa na obra, um filho é uma vingança contra a morte. Passa, então, a buscar pelo mundo e a pedir à natureza um filho, alguma criança sem pai ou mãe, que estaria vagando por aí só para encontrá-lo. Esta pessoa é Camilo, órfão, que o acaso leva até ele.
O filho de mil homens é quase como uma fábula, composta pela metáfora dos encontros, da justiça do destino. Seus personagens, todos eles, são imperfeitos, parcialmente escanteados pela sociedade. Apesar disso, é como se o afeto ilimitado de Crisóstomo fosse contagioso. Antonino, por exemplo, um “maricas”, sofre com a homofobia da pequena vila e com a própria incapacidade de se aceitar – tanto que chega a conclusão de que feliz é quem se torna o que não pode, quem supera as impossibilidades.
Essa narrativa esperançosa – que busca que a “realidade aprenda” – não é autobiográfica, claro, mas fala de um corpo de desejos que o próprio Hugo Mãe já assumiu publicamente, como a vontade de ter um filho. Afinal, mais uma vez Crisóstomo nos ensina: “Deve-se nutrir carinho por um sofrimento sobre o qual se soube construir a felicidade (...). Nunca cultivar a dor, mas lembrá-la com respeito, por ter sido indutora de uma melhoria, por melhorar quem se é”. Com O filho de mil homens, Mãe acaba de provar que melhorou quem já era – um feito muito impressionante.
Leia a matéria completa no Jornal do Commercio deste domingo (29/4)