No livro São Bernardo, o personagem-narrador Paulo Honório, um fazendeiro cruel e arrependido, faz um balanço da sua vida infeliz: “A culpa foi minha, ou antes, a culpa foi desta vida agreste que me deu uma alma agreste”. O termo “agreste”, usado brilhantemente como um adjetivo, poderia servir para definir o próprio autor da frase, o escritor alagoano Graciliano Ramos, se despido do teor negativo. O autor de Vidas secas era, sim, um homem agreste, seco, duro e calado, mas era também um humanista, um homem em profundo contato com a condição humana e com as mazelas sociais da sua região. Antes de tudo, alguém que soube retirar o pitoresco do regionalismo para mostrar tanto a realidade do Nordeste como as pessoas da região.
Os 120 anos do nascimento de Graciliano – celebrados neste sábado (27/10) – vão receber as honrarias merecidas. Desde setembro o autor foi anunciado como o homenageado da Festa Literária Internacional de Paraty de 2013. No Recife, a Academia Pernambucana de Letras recebe na segunda (29/10) e na terça (30/10) seminários sobre a obra o autor, com palestras de Raimundo Carrero, Ronaldo Correia de Brito, Lourival Holanda e Alcides Vilaça.
Entre os lançamentos editoriais, três ganham destaque: a edição ampliada da biografia O velho Graça (Boitempo, 360 páginas, R$ 52), do jornalista Dênis de Moraes; o box com os quatro primeiros romances do autor, Caetés, São Bernardo, Angústia e Vidas secas (Record, sem preço definido); e a coletânea de inéditos Garranchos (Record, 378 páginas, R$ 50), organizado por Thiago Mio Salla, com contos da adolescência do autor, artigos nunca publicados em livro e até uma peça.
Apesar de ter inscrito sua obra na história da literatura brasileira, Graciliano só começou a publicar livros tarde: antes, sua atuação se restringiu à artigos na imprensa e a alguns contos na adolescência. Seu nome foi alçado aos meios literários do Rio de Janeiro pelos relatórios oficiais que fez como prefeito da cidade onde morava, Palmeira dos Índios.
“Nunca pude sair de mim mesmo. Só sei escrever o que sou. E se as personagens se comportam de modos diferentes, é porque não sou um só”, disse, certa vez. Era capaz de compor personagens que tinham, ao mesmo momento, complexidade psicológica e ligação com a realidade social do Nordeste brasileiro.
“Graciliano tinha características de uma personalidade excêntrica. Ele se autodepreciava com facilidade, o que levou alguns críticos apressados a considerar que ele não tinha consciência dos avanços do próprio trabalho”, explica o biógrafo Dênis de Moraes. “É uma doce ilusão: ele sabia como poucos o que estava fazendo e até mesmo da função social do escritor”.
É a mesma impressão do escritor e poeta Pedro Américo de Farias, também um estudioso da obra de Graciliano. “Ao ler as suas ‘autocríticas’, sempre tenho a impressão de que, na verdade, ele estaria querendo dizer mesmo era o seguinte: ‘Vocês aí, que escrevem tanta bobagem, com tanta facilidade, deviam ter mais responsabilidade e cuidar com mais respeito dos temas e da linguagem’”.
Para o professor da UFPE Lourival Holanda, autor do livro Sob o signo do silêncio sobre Graciliano, o escritor era exigente com a linguagem porque sentia que ela era usada para mascarar muitas coisas. Era o que crítico pernambucano Álvaro Lins chamava de “angústia da forma” do autor. “Um risco: quando todo mundo escreve ‘bonito’, ele escreve ‘forte’”
Lourival destaca que Graciliano ainda tinha uma abordagem própria do regionalismo modernista. “Regional resulta em redundância. Cedo se torna um estereótipo saturado. Em Graciliano é uma circunstância – só. Porque ele aposta numa linguagem-filtro (deixando de lado a borra do estereótipo), aprofunda nossa experiência humana (pode ser lido em qualquer lugar) e alarga nossa experiência literária (em qualquer tempo)”, define.
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