O título é um dos melhores do ano: Teoria geral do esquecimento. O autor angolano José Eduardo Agualusa, convidado da Fliporto de amanhã, quando conversa com Mia Couto, faz na sua obra uma alegoria da recusa da mudança, com uma personagem que se empareda para não ver a independência de Angola. Nesta entrevista, o autor comenta sobre o esquecimento e o tema da conversa no festival.
JC - Ludovica é uma mulher que escolhe ignorar - ou esquecer - as mudanças do mundo externo, que se trancafia fisicamente e mentalmente entre paredes. Como essa personagem surgiu? Foi um processo doloroso o de se colocar no papel de alguém que sofre com o isolamento que ela mesma se impôs?
JOSÉ EDUARDO AGUALUSA - Não sei ao certo como surgiu. Talvez eu a tenha sonhado, como acontece quase sempre comigo. Sei que ela foi crescendo dentro de mim ao longo de muitos anos. Foi um processo de aproximação a um tipo de pessoas que eu conheço desde sempre, desde criança, mas que durante muito tempo não compreendi - pessoas que vivem com o terror das outras. No caso é uma portuguesa que vai para Angola e vê os angolanos como inimigos. Mas podia ser em qualquer lugar do mundo. Depois do livro ter sido publicado em Portugal comecei a receber recortes de imprensa, enviados por leitores, sobre situações semelhantes, de pessoas que se emparedavam em casa, aterrorizadas, e isto em Lisboa, em Nova Iorque, na África do Sul. Escrever é tentar compreender. Escrevemos para ver melhor. Para chegar ao coração dos outros. Talvez se a minha personagem se tivesse dedicado à ficção, ao invés de à poesia, tivesse vencido esse medo mais cedo.
JC - Ao mesmo tempo em que o livro é sobre o esquecimento, Ludovica sente a necessidade de anotar suas lembranças em cadernos e até mesmo em paredes. Em que sentido essa obsessão pelo registro também é uma forma de esquecer? Esquecer também é uma rendição, como diz um dos personagens do livro?
AGUALUSA - No caso, talvez. No final do livro ela está cega e, todavia, continua a escrever. Não escreve para ela, porque não consegue reler o que vai deixando escrito. Na verdade, escreve para se explicar. Esquecer pode ser uma rendição. O mais saudável seria enfrentar as memórias difíceis, os erros do passado, as mágoas do passado, para que esses erros não se repitam, e essas mágoas parem de doer.
JC - Se há uma premissa talvez triste - a do isolamento de Ludovica, que não aceita a independência de Angola -, o livro traz ao fim uma mensagem esperançosa. É assim que você olha (ou gostaria de olhar) para a realidade angolana? Ludovica é, de certa forma, uma metáfora do processo de estabilização da indepência do país, tão penoso?
AGUALUSA - O livro tem muita luz, é um romance muito, mas mesmo muito otimista. Se há uma tese, nesse livro, é a de que estamos sempre a tempo de nos salvarmos. A escolha final é sempre nossa. Podemos em qualquer instante refazer o nosso caminho. Neste livro quase todos os personagens se salvam, e salvam-se pela aproximação ao outro. Sabe qual o primeiro passo para desencadear uma guerra, em particular uma guerra civil? Desnacionalizar o outro. Primeiro retira-se ao outro o direito ao país. Depois retira-se a humanidade. Os Nazis comçaram por negar aos judeus a sua germanidade. A seguir passaram a tratá-los como infra-humanos. Então para vencer uma guerra, para conseguir uma paz autêntica, é necessário primeiro reconhecer a humanidade do outro. Um dos personagens, um mercenário português, responsável por crimes horríveis, salva-se a partir do momento em que se transforma naqueles que combatia. Ele entrega-se à humanidade dos outros e assim se faz mais humano.
JC - Mia Couto fez alguns dias atrás uma palestra na Universidade Federal de Pernambuco. O começo da fala dele parece ter uma relação forte com seu livro: o tema da mesa era memória, mas ele ressaltou a importância do esquecimento, lembrando até como o povo de Moçambique, depois da guerra, escolheu superar o trauma através do esquecimento. Crê que esquecer é algo que deve ser praticado? Quando é necessário esquecer alguma coisa?
AGUALUSA - Em Moçambique, em particular nas áreas rurais, as pessoas acreditam que a guerra soltou forças funestas e que essas forças, essas energias, transformaram os homens em feras. Essas populações receiam que ao nomear a guerra, ao falar sobre a guerra, se acordem tais forças. Por isso preferem não sei se esquecer ou se fingir que esqueceram. Essa é, creio, a tese do Mia Couto. Pode ser que funcione em Moçambique, esperemos que funcione, mas tenho algumas dúvidas. Prefiro o modelo sul-africano. Os sul-africanos criaram as famosas comissões da verdade e da reconciliação. Os algozes, aqueles que torturaram, que assassinaram, eram convidados a encarar as suas vítimas, a conversar com elas, a alcançar um perdão. Esse perdão transformou a vida de muitos homens. Torturadores e torturados se abraçam e choram juntos. Recordam o horror e assim o vencem. É preciso dizer que nos regimes totalitários, nos regimes sujeitos ao domínio da estupidez, como aconteceu na África do Sul durante o apartheid, ou na Alemanha durante o nazismo, há vítimas de ambos os lados. O dominador é, também ele, uma vítima do sistema.
JC - Como imagina que os dois elementos presentes no tema da sua mesa da Fliporto, realidade e literatura, se relacionam na escrita? Como a invenção e a imaginação ajudam a compor seus livros? Pensa que sua obra tem elementos em comum com a de Mia Couto?
AGUALUSA - Sim, a minha obra é estranhamente próxima da do Mia. De forma diferente, com estilos muito diversos, estamos desde o início a trabalhar os mesmos temas - identidade, memória, raça, a origem do mal. Eu sou atlântico. O Mia é índico. Tem a paz do Índico. É um escritor extraordinário e uma pessoa ainda mais extraordinária. Tenho a certeza de que me vou divertir nesse debate, de que vou aprender alguma coisa, de que vou sair transformado. Espero que os nossos leitores também.