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Estamos vivendo um momento de redescoberta de Gilvan Lemos, esse discreto morador do Centro do Recife. Primeiro foi sua eleição para a Academia Pernambucana de Letras. Agora é o homenageado da Bienal Internacional do Livro de Pernambuco de 2013. Tão bom quanto isso tudo é a reedição de Os olhos da treva, que a Cepe acaba de lançar. Embora nunca tenha sido, na verdade, esquecido, seus livros começavam a desaparecer das livrarias, pela falta de reedições mais imediatas.
Por isso, a iniciativa da Cepe nos faz um bem enorme: chega na hora certa e mostra aos mais jovens que temos aqui um autor que honra e alegra, pela natural qualidade, a trajetória de uma literatura verdadeiramente forte, autêntica e bela. Mas não basta dizer, é preciso mostrar. O que nos leva a considerar Gilvan, um dos principais escritores do país? As respostas são inúmeras: a qualidade dos seus textos; o vigor dos personagens; o desenvolvimento, às vezes ingênuo, das suas histórias.
Vejamos a notável abertura de Os olhos da treva:
"Uma velha com a cara de índia entreabriu o postigo e indagou o que era. Não houve resposta imediata à sua indagação: a pessoa que se encontrava do lado de fora parecia certa de ser reconhecida sem mais preâmbulo e, calada, imóvel, até com certo ar brincalhão, esperava que isso acontecesse. Noite cerrada, vivente alguma na rua, um silêncio de expectativa, frio seco.
Vento ralo na bainha das calças. A velha estática, apreendia tudo isso mais o cheiro do homem à sua porta. Seu rosto escuro, que surgira antes curioso, recebeu de súbito, uma aragem de dúvida, e endureceu retraído.
A velha recuou meio passo, a mão firme protegendo o postigo, deixou-se envolver na escuridão da sala. A sombra que lhe caía no rosto evitava que suas feições pudessem ser identificadas".
Uma abertura segura, digna de um escritor genuíno e firme. Aí aparece de logo a força da personagem Mila, uma das melhores criações de Gilvan Lemos. Os movimentos são perfeitos e visíveis – aqui começamos a mostrar por que Gilvan é um grande autor –, como o instante que o narrador surpreende a personagem abrindo o postigo para atender a um chamado – enquanto do lado de fora a pessoa fica em expectativa, embora já adivinhando que seria reconhecida. Narrativa em dois planos eivada de mistério e ritmo lento, como sempre convém a um romance de garra. O leitor mais vê do que lê e, no mesmo instante, já está dentro da história, da qual jamais poderá se desligar.
Gilvan usa, ainda, outro artifício ficcional notável, trata o segundo personagem apenas de uma pessoa, nem mesmo dá traços físicos, e isso cria um conflito psicológico no leitor. É claro que isso vai acontecer um pouco adiante, mas o que importa aqui, e imediatamente, é a construção do texto. A técnica que o autor usa para contar a história, através do narrador. Até porque não é o narrador, mas é o autor, claro, quem decide tudo, quem comanda a mão das suas criações. E a mão de Gilvan é firme.
Raimundo Carrero é escritor e pertence à Academia Pernambucana de Letras