ENTREVISTA

A impossibilidade de seguir Bolaño

O pesquisador e crítico literário Schneider Carpeggiani fala da obra do escrito chileno, tema da sua tese de doutorado

Diogo Guedes
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Diogo Guedes
Publicado em 15/07/2013 às 6:00
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O jornalista, crítico literário e editor do Suplemento Pernambuco Schneider Carpeggiani é um estudioso da obra de Bolaño. Sua tese de doutorado, Bolanianas: memórias e espantos a partir de Estrela distante aborda como o autor adianta no romance elementos de suas narrativas tardias. Neste mês, ele publicou um ensaio sobre os dez anos da morte do autor chileno no suplemento.

JORNAL DO COMMERCIO - Fui ler uma matéria sobre a morte de Bolaño, em 2003, em jornais brasileiros e não tinham mais do que umas quatro frases frias. Como seria o tom dessa notícia se Bolaño tivesse morrido hoje, quando o mundo literário é efusivo com sua obra?
SCHNEIDER CARPEGGIANI -
A morte é o melhor agente literário. Sobretudo a morte no auge da produção. Roberto Bolaño dedicou todo seu tempo à literatura, tanto escrevendo quanto vivendo uma vida literária (ou seja: convivendo com outros escritores, fazendo manifestos, protestando...). Mas apenas em meados da década de 1990, e num tempo muito curto, que ele ergueu o mais importante da sua obra, entre elas dois livros com cerca de mil páginas (2666 e Detetives selvagens). Quando Bolaño faleceu, já era um escritor famoso, mas a morte, como era de se esperar, colocou uma lente de aumento em tudo o que ele fez e viveu: Bolaño se transformou no exilado errante, que driblou a pobreza e que escrevia de forma febril uma obra de milhares de páginas sobre os mesmos personagens, sobre os mesmos traumas, apesar de uma morte iminente. Além disso, muito do seu mito vem justamente em relação aos mistérios que cercam 2666, um livro não revisado, cheio de falhas, mas assustador também por isso, o que nos remete ao mito kafkiano de O castelo, livro incompleto mas com final – quer coisa mais literária que isso?  E a morte nos leva à outra questão: a morte nos fascina e ajuda a criar mitos porque somos fascinados por ausências. Diante da morte do outro, só podemos interagir a partir dos nossos próprios fantasmas, seguindo alguém que não se mexe – quer algo mais “Bolaño” que isso? Se tivesse falecido hoje, seu obituário seria maior, mas talvez menos fascinante. Não costumamos perdoar os que sobrevivem.

JC - Bolaño é hoje uma sombra literária tão grande quanto o realismo fantástico foi durante o século 20? Existem herdeiros apontáveis do autor?
SCHNEIDER -
O Boom dos anos 60 (que tem como um dos seus sinônimos o traço literário de alguns dos seus “participantes”, o tal do realismo mágico) é tanto um gênero literário quanto o mangue beat é um ritmo.  Na verdade, trata-se de um rótulo cujo nome é retirado do jargão econômico para falar do crescente número de vendagens dos autores latino-americanos, reunindo tipos tão diversos quanto Garcia Márquez, Borges, Vargas Llosa, Onetti, Cortázar...O Boom foi uma jogada econômica para nos comercializar, outra vez mais, como exóticos. Tendo em vista isso, o Boom tem mais a ver com uma escritora medíocre como Isabel Allende do que com um García Márquez. Bolaño foi o primeiro nome a perfurar o tal do Boom, estabelecendo-se sem qualquer rótulo de exótico nos mercados norte-americano e europeu. Qual seria então sua originalidade para tanto? Podemos arriscar alguma resposta: Bolaño redimensiona alguns dos grandes estereótipos da literatura (o detetive como um outsider; o duplo; o exílio; a odisseia; a memória fraturada...), a partir do olhar de um homem fraturado pelo trauma histórico – no seu caso, o 11 de setembro chileno, que acertou em cheio toda sua maioria, são jovens. geração. Além disso, existe um certo  “charme Bolaño”, o charme do outsider julgando o mundo com seu cigarro, que tem um apelo juvenil enorme, isso desde os beats, desde Fante. Acho que o grande desejo do mercado literário é encontrar um James Dean que escreva. É só  você ler a Granta de novos autores latino-americanos, lançada há uns dois anos, para ver a influência de Bolaño ou mesmo ler alguns dos jovens autores brasileiros... Estamos muito próximos a Bolaño para fugirmos dele, a literatura dele impregna. Só espero que ele ajude a gerar menos Isabel Allendes.

JC - A imagem e a vida de Bolaño se tornaram elementos tão marcantes de sua obra, numa medida parecida com a de seus livros. Seu sucesso se deve também por uma mítica do homem? A vida, as entrevistas e a figura de Bolaño são parte da sua obra?
SCHNEIDER -
Foi como disse: a morte ajudou a criar um mito que teve início com as histórias do próprio Bolaño. Existem várias histórias cercando uma vida de exageros, de que ele vivia bêbado ou drogado, mas quando é notório que Bolaño gostava mesmo de chá e de escrever. Mas é bom que existam os mitos, eles ajudam a vender e nesse caso a vender uma ótima obra literária. Não podemos nos enganar: uma obra literária não é só feita de livros e de palavras; também é feita por aquilo que o autor viveu, falou ou pela dúvida que ele nos deixou. Tudo isso é literatura. As entrevistas de Bolaño, por exemplo, são uma obra de arte à parte, cheia de frases de efeito, cheias de não-revelações impressionantes. E os próprios livros de Bolaño nos lembram de que não escrever uma obra é um gesto tão literário quanto escrever uma obra. A criação literária não está apenas na escrita do texto, quer coisa mais fascinante que um escritor que não escreve ou um ghost writer ou um contratante de ghost writer? Isso tudo é muito literário, isso tudo é muito Bolaño.

JC - Como é possível descrever a literatura de Bolaño, entre infrarrealismo, contos, romances e poemas? Que marca da obra dele o faz tão singular para você?
SCHNEIDER -
Eu respondi a essa pergunta de alguma forma nas anteriores. Mas vou lançar mão de uma definição da literatura dele: ler Bolaño é como aqueles momentos em que nos viramos para ver uma coisa que desaparece justamente quando nos viramos para olhar para ela. Isso é um pouco o que é a literatura: a coisa que desaparece e que nos obriga a fantasiar a partir das lacunas deixadas.

JC - Alan Pauls fala dos livros de Bolaño como "obras-zumbi", doentes, desajustadas. Como é possível ver o autor através dos sintomas de suas narrativas?
SCHNEIDER -
Alan Pauls na verdade parece situar Bolaño dentro da tradição literária de grandes obras que são zumbis ou seja: desajustadas em relação aos seus contemporâneos e por isso nos assombram até hoje. Pense no cego Homero, nos livros pela metade de Kafka, nas areias pesadas que são linguagem de Joyce...Bolaño nos ajudou a começar o século 21 com uma obra zumbi, que é o caso de 2666, um livro que sonha em ser a biblioteca de Babel de Borges, ou seja: infinito. E ainda  por cima escrito por um homem que se sabe prestes a morrer, que sabe que tudo que é vivo não tem remédio e que talvez seja essa a nossa salvação.

JC - Qual a melhor metáfora para descrever Bolaño, a do detetive, tão recorrente, a do guerreiro, a do cavaleiro rural belga ou alguma outra que ele mesmo não cunhou?
SCHNEIDER -
A melhor metáfora é a do detetive. Desde que o gênero policial foi criado por Poe, o detetive é visto como o outsider ideal das grandes cidades, o homem que trafega anônimo em meio a uma metrópole que apaga as identidades, que tenta apagar o caminho percorrido pelo criminoso. No caso de Bolaño, a diferença é que o crime já prescreveu, mas ninguém teve o cuidado de avisar isso ao detetive.

JC - Queria que você falasse também da mostra sobre Bolaño em Barcelona, em cartaz nesse ano. É sintomático um escritor receber tamanha atenção, digamos, visual, não é? O que se pode notar sobre Bolaño (e sobre seus leitores) com essa grande homenagem?
SCHNEIDER -
É incomum um autor de obra tão recente ter uma retrospectiva do tamanho que teve a de Bolaño agora em Barcelona – se bem que 10 anos numa época como a nossa equivale a um século... Foi a primeira vez que tivemos acesso a parte da sua biblioteca, aos seus manuscritos, aos seus originais. Como disse antes: a obra literária não é só feita de livros, é feita da possibilidade dessa interação. Seria muito bom se essa exposição entrasse em turnê, algo como um relicário na estrada para encontrar seus fiéis. Afinal, o bolanismo é um culto em ascensão em escala global, como certas igrejas...

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