O poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto costumava declarar que possuía duas influências para a sua poesia: os ensaios (e não os versos) do francês Paul Valery e o pensamento do arquiteto Le Corbusier. De Valery, tirou a necessidade de sempre pensar a poesia enquanto a criava, de fazer da palavra não um veículo do lirismo ou do acaso, mas da matéria e do humano. A presença de Corbusier, uma referência ainda mais estranha, pode ser vista com maior clareza em um lançamento recente: Notas sobre uma possível A casa de farinha (Alfaguara, 152 páginas, R$ 50), organizado pela filha do poeta, Inez Cabral de Melo.
O volume não reúne uma obra inédita do autor de Morte e vida severina, apesar de trazer à tona um documento até então desconhecido do público. Na edição, está o caderno de anotações do escritor, feito quando ele começou a projetar, tal qual um arquiteto, dando funções e contornos a abstrações e ideias, um novo poema narrativo, pensado para ser encenado. O tema, desta vez, eram as tradicionais casas de farinha, responsáveis no interior do Nordeste por triturar e secar a mandioca.
A edição não foge ao bom cuidado dedicado atualmente à produção do poeta pernambucano. Sendo obra incompleta, a iniciativa poderia soar como busca por dinheiro por parte de herdeiros – algo já feito por outros familiares de escritores pelo mundo. Um dos acertos é que o volume, desde seu começo, tem o cuidado de não se mostrar como poema finalizado, mas, sim, como testemunho parcial de uma construção. Talvez se só trouxesse anotações comuns, o livro ficasse restrito a especialistas. Os rascunhos sólidos de um escritor tão metódico como João Cabral, na verdade, são verdadeiras atestados não só do seu processo de criação, mas do conteúdo e da simbologia que o poema viria a assumir, se concluído.
Um pouco antes de partir, meu pai me disse, ao me entregar um fichário escolar (...):- Minha filha, a cegueira não me deixou terminar, faça o que quiser com isto.Ao folhear os papéis encontrei, senão uma obra completa, o trabalho de estudo e pesquisa"
Inez Cabral, cineasta e filha do autor
ANOTAÇÕES
A trama definida pelo poeta não era definitiva: tratava-se de uma mera especulação da sua ideia, só concretizável na escrita. Algumas páginas, ensaios da abertura da obra com o início da notícia do fechamento da casa de farinha, estão feitas em uma primeira versão, quase sem possibilidade de encaixe entre si, mas, conhecendo-se o rigor de João Cabral, as palavras seriam ajustadas até tocarem no cerne do que deveriam dizer.
Entre as anotações, estão referências de leituras. De James Joyce, ele anota uma expressão, “praiser of days gone by” (algo como, em tradução livre, “admiradores dos dias passados”) – e é dela que vai extrair o pessimismo saudoso das raladoras. O início, o poeta cogita, ainda poderia brincar com as “primeiras palavras”, tão importantes para os versos de Rainer Maria Rilke.
Sobre o Doutor Sudene, que é esperado e que não aparece, João Cabral revela ter medo transformá-lo em um Godot, da peça Esperando Godot, de Samuel Beckett, um salvador externo que nunca virá trazer a redenção. “O Doutor Sudene: fabuloso de meios para fazer as coisas, ajudá-los, etc. – Fabuloso de poder para impedir os abusos do coronel. Os otimistas creem nele; os pessimistas reconhecem sua existência mas dizem que é igual a todos”, anota o autor em uma folha.
O livro é uma maneira de espiar silenciosamente a forma de escrita do poeta pernambucano. O processo criativo sempre revela muito sobre um artista – a crítica genética, por exemplo, se vale exclusivamente disso. É possível presumir, inclusive, que o modelo de construção mostrado em Notas sobre uma possível A casa de farinha é semelhante ao que foi feito em obras como Morte e vida severina. Se uma parte escondida do autor se desnuda quando o leitor observa o nascer da obra, o que permanece oculto, em compensação, é ainda mais desafiador – por isso que a poesia de João Cabral se torna ainda mais fascinante ao se entrar um pouco em seus bastidores.
Leia a matéria completa no Jornal do Commercio deste domingo (3/11).