80 ANOS

A prosa mestiça de Gilberto Freyre

No terceiro dia da série sobre Casa-grande & senzala, a história de como surge o estilo inconfundível da sociologia do autor pernambucano

Diogo Guedes
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Publicado em 17/12/2013 às 5:59
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No terceiro dia da série sobre Casa-grande & senzala, a história de como surge o estilo inconfundível da sociologia do autor pernambucano - FOTO: Reprodução
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Casa-grande & senzala inaugurou várias revoluções no pensamento social brasileiro, através da abordagem temática, da metodologia e das proposições da formação colonial brasileira. Se tudo isso já foi radicalmente novo, o clássico do pernambucano Gilberto Freyre ainda guarda algumas outras sutilezas. A análise feita por ele ainda hoje gera debates apaixonados, mas, de forma quase unânime, é a sua prosa que é apontada como o primeiro aparato da sedução freyriana.

O autor levou para o seu ensaísmo sociológico – já miscigenado, como não poderia deixar de ser, com outras áreas da teoria da sociedade – também um estilo de escrita próprio. Para descrever o cotidiano da sociedade patriarcal das casas-grandes, usava sem pudor longos períodos, enumerações dedicadas, descrições com pormenores, a argumentação através de imagens, expressões coloquiais. Assim como a sua metodologia era singular, a forma de expô-la ia sendo retirada de outros universos, chegando muito além da sisudez acadêmica. No prefácio de uma das edições francesas do livro, o historiador Lucian Febvre comentava sobre a dúvida de classificar o livro como sociologia ou história: “É inútil. Casa grande & senzala é o livro de um homem sobre o homem”.

A subjetividade da empreitada de Freyre foi uma de suas principais forças e, também, alvo de ironias. Josué de Castro, por exemplo, durante uma discussão pública com o colega pernambucano, chegou a afirmar que o sociólogo era apenas um dos “magníficos literatos” brasileiros. Ou seja, mesmo para discordar das afirmações freyrianas, era inevitável reconhecer a fluidez da sua prosa.

O crítico literário e escritor Mario Helio Gomes, freyriano e autor do recém-lançado Casa-grande & senzala: o livro que dá razão ao Brasil mestiço e pleno de contradições (É Realizações), destaca que o autor tinha um “viço de linguagem incomum em obras do gênero no Brasil”, reconhecido por nomes como João Cabral de Melo Neto. O poeta chegou a escrever um poema sobre o primeiro livro de Freyre, em que dizia: “Ninguém escreveu em português/ no brasileiro de sua língua:/ esse à-vontade que é o da rede,/ dos alpendres, da alma mestiça,/ medindo sua prosa de sesta,/ ou prosa de quem se espreguiça”.

Professor de letras da Universidade Federal de Pernambuco, Anco Márcio Tenório explica que esse efeito se dá pelo uso de elementos da retórica por Freyre, em um domínio da linguagem que ia além do campo da gramática ou da dialética – a lógica. Na visão do pesquisador, o autor trazia para o meio da exposição do seu pensamento o imagismo, que construía cenas para o leitor visualizar; a enumeração, influência do escritor Miguel de Unamuno, muito admirado pelo pernambucano; e o coloquialismo, em “uma prosa antes com o gosto do português da rua do que do livro”. Um texto de Plínio Barreto sobre o Casa-grande & senzala publicado em 1934, no jornal O Estado de S. Paulo, citado por Mario Helio, reclamava de que o “Sr. Gilberto Freyre gosta de dizer as coisas nua e cruamente e escreve em português claro aquilo que os autores pudicos só costumavam escrever em latim”.

Para Anco Márcio, no entanto, o principal aspecto da prosa de Freyre é o expressionismo, “meio de ultrapassar as fronteiras entre o sujeito e o objeto de estudo”, que é mais do que um recurso de estilo: deve ser entendido como parte de seu método. “É o expressionismo que lhe permite inscrever no texto as suas vivências interiores e de expressão – tanto como cientista social quanto como homem historicamente situado – e, principalmente, contrariar o que pede o método dialético e lógico (que busca chegar à verdade, distinguindo o verdadeiro do falso), ao construir livros que nunca são concluídos”, explica o pesquisador.

Freyre apreciava o reconhecimento da qualidade do seu texto – na verdade, adepto orgulhoso da vaidade, gostava dos elogios em geral. Sua ligação com a literatura sempre existiu; por exemplo, no manifesto regionalista de 1926, contraposição ao modernismo paulista da Semana de Arte Moderna de 1922. São famosas as suas afirmações de que, antes de se ver como um sociólogo ou antropólogo, preferia ser chamado de escritor. “Sem dúvida, Gilberto Freyre tinha estilo, e ele o aplicou na sua visão da formação brasileira, escrevendo como ‘sociólogo-antropólogo’ capaz de até poetizar – para bem e para mal – descrições que seriam, talvez, áridas pela voz de um cientista social sem grandes ambições literárias. Aliás, Freyre tinha mais ambições do que qualquer outro intelectual da sua época – ambições essas servidas de um ego também sem igual”, aponta o poeta, escritor e cineasta Fernando Monteiro, para quem o autor só poderia ser considerado um “escritor” em uma acepção muito larga do termo, que vá bem além da literatura.

A escritora e antropóloga Fátima Quintas, autora de Joaquim Nabuco e Gilberto Freyre face a face (Massangana), aponta que a academia ainda sente falta de teóricos que trabalhem com a clareza da prosa entre “o lírico-poético e o impacto narrativo” de Freyre. “É preciso que a ciência não brigue com a literatura; ao contrário, andem juntas num diálogo fecundo. Não há razão de se estabelecer padrões rígidos para representar o humano. Isso seria o mesmo que negá-lo”, defende. “Somente a ciência ‘medrosa’ se recolhe em grutas de isolamento.”

FICCIONISTA
Sempre flertando com os ambientes e as amizades literárias, não foi estranho que Freyre caminhasse em direção a tentativas no campo da ficção e da poesia. Nos versos, estreou em 1962, com o volume Talvez poesia, que ganharia acréscimos ao longo do tempo até virar uma antologia completa pela Editora Global, lançada neste ano. Dessa parte, Mario Helio destaca Aventura e rotina e Bahia de Todos os Santos e de quase todos os pecados. “Gilberto produziu versos que ficaram a meio caminho entre o Manuel Bandeira mais ‘leve’ e o Ascenso Ferreira mais ‘óbvio’”, comenta o escritor Fernando Monteiro, ainda destacando que há um distância entre os dois e o sociólogo pernambucano.

No campo da ficção, ainda mais arenoso, lançou, em 1964, Dona Sinhá e o filho padre: seminovela, que ganharia uma continuação 13 anos depois, com o título O outro amor do Dr. Paulo: seminovela. “A prosa ficcional de Freyre é um bom exemplo de que o bem escrever não é pré-condição para que uma obra literária fique em pé. Apesar de fazer uso dos mesmos ‘procedimentos retóricos’ e estilísticos usados em sua prosa científica, a ficção de Freyre fica parede meia entre a ficção e a história, e quando o autor tem que decidir qual partido tomar, toma o partido da história”, explica Anco Márcio Tenório. “Assim, o cientista social termina por tolher o ficcionista e, por extensão, aquilo que é a alma da literatura desde os gregos: o contar uma história não como os fatos ocorreram, mas como eles poderiam ocorrer.”

Fernando Monteiro concorda com a visão e é ainda mais crítico da “seminovela” de Freyre: para ele, trata-se de um obra “canhestra, medíocre e até um tanto vexatória para o conjunto da sua hercúlea obra de interpretação do Brasil”. Em 1973, ele chegou a tentar, a convite do escritor Leandro Tocantins, fazer do livro um roteiro cinematográfico. O projeto nunca teve continuidade, porque Fernando achou impossível transformar a obra em trama sem transfigurá-la completamente – só o título permaneceria o mesmo.

As ficções freyrianas, na opinião de Mario Helio, devem ser lidas apenas como “experimentos narrativos”. O próprio pesquisador dá a sugestão: a melhor realização do que o autor pensava no campo da ficção pode ser encontrada na produção de José Lins do Rego. O retrato de Freyre na literatura era dual, como ele mesmo gostaria: um sociólogo próximo da sedução literária em Casa-grande & senzala, mas um escritor que não conseguia fugir de si mesmo para abandonar as teorias sociais dentro da ficção.

Leia um trecho de Casa-grande & senzala, escolhido por Fátima Quintas:

“Ociosa, mas alagada de preocupações sexuais, a vida do senhor de engenho tornou-se uma vida de rede. Rede parada, com o senhor descansando, dormindo, cochilando, Rede andando, com o senhor em viagem ou a passeio debaixo de tapetes ou cortinas. Rede rangendo, com o senhor copulando dentro dela. Da rede não precisava afastar-se o escravocrata para dar suas ordens aos negros; mandar escrever suas cartas pelo caixeiro ou pelo capelão; jogar gamão com algum parente ou compadre. De rede viajavam quase todos — sem ânimo para montar a cavalo: deixando-se tirar de dentro de casa como geleia por uma colher. Depois do almoço, ou do jantar, era na rede que eles faziam longamente o quilo — palitando os dentes, fumando charuto, cuspindo no chão, arrotando alto, peidando, deixando-se abanar, agradar e catar piolho pelas molequinhas, coçando os pés ou a genitália; uns coçando-se por vícios; outros por doença venérea ou da pele”

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