Elogiadíssimo e efusivamente criticado – mas parcamente lido e estudado. Oitenta anos depois do lançamento de Casa-grande & senzala, Gilberto Freyre ainda é pouco investigado nos departamentos de ciências sociais do Brasil. Chega a ser menosprezado. “Gilberto Freyre e sua obra sofrem de dois males. O primeiro é dos admiradores sem críticas. O segundo, e talvez pior, é a dos críticos empedernidos”, sintetiza Jorge Ventura de Morais, pós-doutorado pela London School of Economics e professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco.
“Há uma leitura enviesada da obra de Freyre. Ela é lida como se seu único tópico fosse a questão racial. E mesmo aqui há uma leitura errada e descontextualizada de sua contribuição para o debate sobre as questões raciais no Brasil”, continua o sociólogo. “Particularmente em Casa-grande & senzala, há uma contribuição singular para o desenvolvimento das ciências sociais no País. Ele antecipou os métodos contemporâneos de coleta de dados. Saiu às ruas – ao contrário do que pensam os que o acusam de ver o mundo a partir da casa-grande –, conversou, tomou anotações, ouviu. Mais: numa prática que antecipa o que viria a ocorrer muitos anos depois, interessou-se pelo cotidiano, tentando entender como as pessoas constroem o mundo social”, diz o professor.
Professora do mestrado de antropologia da Universidade Federal de Pernambuco, pós-doutora pela University of St. Andrews, Roberta Campos diz que Gilberto Freyre ainda é vítima de um preconceito de fundo ideológico por suas simpatias e escolhas políticas durante o último regime militar brasileiro. “Segundo, ainda no campo ideológico, a obra de Freyre passa a ser alvo a partir da década de 1970 de interpretações racistas em relação às questões raciais, sofrendo assim uma série de distorções”, diz ela que, ao lado da também professora Mísia Lins Reesink, encampa um projeto de pesquisa, na UFPE, para entender e explicar os processos que constituem a geopolítica do campo das ciências sociais no Brasil, “produzindo desqualifica-ções e ausências dos conhecimentos produzidos fora do eixo Centro-Sul”.
“A nossa hipótese é que o processo de desqualificação de Freyre ao longo das décadas resultou em um processo de inviabilização e desqualificação da produção das ciências sociais em Pernambuco, particularmente, no campo da antropologia”, diz Mísia Reesink. “É uma abordagem que articula processos históricos do passado e contemporâneos, que constituem a disputa política no campo acadêmico atual. Isto tem um resultado prático no campo acadêmico e nas políticas de financiamento, produzindo profundas desigualdades regionais”, explica Roberta.
Não há, entre os departamentos de ciências sociais do Brasil, nenhuma cátedra dedicada a Gilberto Freyre. O único pensador contemplado com uma disciplina, aliás, é Paulo Freire, onipresente em pedagogia. “O fato é que nos inscrevemos em um sistema intelectual que não acredita nos seus próprios agentes, nos seus próprios sujeitos, onde a régua crítica que mede o nosso valor não está depositada em nossas próprias mãos, mas no estrangeiro”, aponta o professor de Letras da UFPE, Anco Márcio Tenório, pesquisador do modernismo regionalista do Nordeste, grandemente influenciado por Freyre.
Como Freyre já teve suas contribuições reconhecidas diversas vezes nas academias estrangeiras, Anco Márcio indica dois obstáculos para o seu maior uso nas universidades brasileiras. O primeiro é a tradição marxista das nossas academias, que discordam da sua antropologia culturalista e alegam que ele releva categorias analíticas como “conflitos de classe, os “conceitos de consciência de classe”, “transplantação cultural”, “cultura alienada”, “alienação cultural”, “autenticidade cultural”, etc. “O apoio de Freyre ao Golpe de 1964 ainda impede que a inteligência universitária consiga ver a sua obra com o distanciamento e a isenção necessários”, defende o professor.
Diretora do Museu do Homem do Nordeste, instituição vinculada à Fundação Joaquim Nabuco criada pelo próprio Gilberto Freyre, a antropóloga Ciema Mello e Silva diz que o sociólogo ainda é um “autor muito citado, mas curiosamente, pouco lido”. “Inclusive, os críticos em geral criticam, mas não conhecem o autor. Ele esteve proscrito por essa polarização que me parece muito pobre entre escritores de direita e de esquerda. Há bons e maus cientistas!”, discorre.
Professor de antropologia da Universidade de São Paulo, Júlio Simões diz que, nos seus anos de estudante, Freyre era deixado de lado. Mas que o panorama, na USP, mudou. “De certa forma, a crítica de Florestan Fernandes aos estudos de raça e relações raciais se impunha. Hoje em dia, na USP, Freyre está presente na bibliografia de qualquer disciplina que trate de pensamento social brasileiro, formação e desenvolvimento da sociedade brasileira ou questões raciais”, diz.
Ainda assim, o sociólogo pernambucano seria resumido ao mais óbvio de seu pensamento. “Uma coisa que desfavorece a obra de Freyre é permanecer comprimido à Casa-grande & Senzala. Ele é autor de uma obra vastíssima, inclusive essa sua obra-prima inaugura uma trilogia que só pode ser compreendida se se chegar até o final, com Sobardos e mocambos e Ordem e progresso”, aponta Ciema Mello e Silva.
No livro Casa-grande & senzala - O livro que dá razão ao Brasil mestiço e pleno de contradições, Mario Helio Gomes lembra que é possível dividir a recepção da obra de Freyre em, pelo menos, três períodos. O primeiro vai do lançamento do livro, em 1934, até a metade da década de 1960, quando os críticos veem uma contribuição positiva ao pensamento social no Brasil. As principais ressalvas, naquele momento, são de viés conservador: contra a linguagem do livro e a visão negativa dos jesuítas, por exemplo.
Isso mudaria, explica Mario Helio, a partir de 1964, quando as posições políticas do autor – apoio a duas ditaduras: a do Brasil e a de Salazar, em Portugal – passam a influenciar as leituras, com comentários sobre a metodologia freyriana e principalmente ao repúdio a visão de que Casa-grande & senzala defendia que houve uma “confraternização entre senhor e escravo”.
Essa era a principal crítica da famosa Escola Sociológica de São Paulo, tradição do pensamento social brasileiro que por anos teve Freyre como um de seus alvos preferenciais. No prefácio da edição de Casa-grande & senzala comemorativa ao centenário de Freyre, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso acenou uma espécie de bandeira-branca entre a corrente sociológica iconizada por Florestan Fernandes e o pensamento freyreano. “Latifúndio e escravidão, casa-grande e senzala eram, de fato, pilares da ordem escravocrata. Se nosso autor tivesse ficado só nisso seria possível dizer que outros já o haviam feito e com mais precisão. É no ir além que está a força de Gilberto Freyre. Ele vai mostrando como, no dia a dia, essa estrutura social, que é fruto do sistema de produção, recria-se. É assim que a análise do nosso antropólogo-sociólogo-historiador ganha relevo”, elogiou.
Mas o sociólogo que pediu que esquecessem tudo o que ele própria havia escrito não deixou de rubricar, elegantemente, que a sociologia de Freyre via, sim, o Brasil a partir da varanda da casa-grande. “Gilberto Freyre deixou de dar importância aos escravos no eito, à massa de escravos que mais penava nos campos. É indiscutível que a visão do mundo patriarcal de nosso autor assume a perspectiva do branco e do senhor. Não preciso referir-me aos aspectos vulneráveis já salientados por muitos comentadores de Gilberto Freyre: suas confusões entre raça e cultura, seu ecletismo metodológico, o quase embuste do mito da democracia racial, a ausência de conflitos entre as classes, ou mesmo a ‘'ideologia cultural brasileira’ baseada na plasticidade e no hibridismo inato que teríamos herdado dos ibéricos”, prefaciou FHC.
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