Claudia, personagem do romance Formas de voltar para casa (Cosac Naify, 160 páginas), explica ao narrador sem nome da obra que não fuma quando está longe do seu país de origem, o Chile. “Em Vermont (nos Estados Unidos) não me dá vontade de fumar, mas chego no Chile e fumo como uma louca (...) É como se o Chile tivesse ficado incompreensível ou intolerável sem fumar”, explica.
A ideia de um país (e, na verdade, um país costuma ser uma boa metáfora para um passado coletivo) sufocante é em alguma medida o que sustenta o terceiro livro do escritor Alejandro Zambra lançado agora no Brasil. Autor das curtas novelas Bonsai e A vida privada das árvores, o chileno parece gostar de construir suas obras em torno de pequenas tiradas literárias. Em Bonsai, o final da história é revelado logo no começo (“No final Emilia morre, Julio não morre. O resto é literatura”). Na outra, Julio – o mesmo personagem – escreve um romance numa noite em que a sua companheira não volta à casa; o livro só existe enquanto ela não retorna, e o suspense pela razão da demora só cresce.
Se essas duas premissas ajudam a explicar a natureza das outras obras de Zambra, Formas de voltar para casa poderia ser resumido, com alguma simplificação, como um “romance dos filhos”, uma tentativa de escrita daqueles que eram apenas coadjuvantes desatentos da história. O tema da narrativa – muito propício para o momento em que o Brasil lembra os 50 anos do golpe de 1964 – são os anos duros da ditadura chilena, uma das mais sangrentas da América Latina.
Por uma amizade de infância com uma garota, a Claudia do início, o narrador revisita o passado sombrio. A história passa por diversos momentos: o passado, no auge do terror da ditadura; a relação falhada com sua ex-companheira, Eme; e a necessidade e a impossibilidade de escrever sobre a opressão daqueles anos em que se era uma criança. Espécie de fantasma da infância do narrador, Claudia, por exemplo, é um amor desastrado da maturidade. A personagem é uma forma cruel de Zambra mostrar como uma tragédia histórica vai bem além do seu fim e vive dentro das pessoas, como traumas e como culpa.
“Enquanto os adultos matavam ou eram mortos, nós fazíamos desenhos num canto. Enquanto o país se fazia em pedaços, nós aprendíamos a falar, a andar, a dobrar os guardanapos em formas de barcos, de aviões. Enquanto o romance acontecia, nós brincávamos de esconder, de desaparecer”, descreve Zambra no início do livro.
MEMÓRIA
Herdeiro do terror, o escritor-personagem se vê obrigado a lidar com o peso da memória, mas sem a lucidez (até porque talvez ela não exista) de quem a viveu na pele. Não por acaso, o romance parece ser criado de forma intencionalmente irregular, com idas e vindas nas quais personagens ficcionais se tornam “reais” e memórias claras ficam difusas. Se Bonsai é uma obra direta e fluida desde o seu primeiro parágrafo, aqui temos uma narrativa cheia de incertezas e ponderações, que são bem mais estranhas para o leitor.
Essas lembranças porosas, feitas de imagens repletas de “ruídos” e “manchas”, são para Zambra a matéria-prima da escrita. É por isso, também, que não existe uma forma de voltar para casa: são várias, porque cada caminho da memória é uma escolha por uma autoilusão particular. “Deveríamos simplesmente descrever esses ruídos, essas manchas na memória. (...) Por isso um livro é sempre o reverso de outro livro imenso e estranho. Um livro ilegível e genuíno que traduzimos, que traímos pelo hábito de uma prosa passável”, escreve o narrador da obra, em dado momento.
Filho de uma família que não combateu a ditadura, o narrador enfrenta as consequência íntimas dessa omissão dos pais em relação ao regime de Pinochet. A história da dor de Claudia só contrasta com esse silêncio deles: de certo modo, Formas de voltar para casa é um romance de alguém que não estaria apto, pela experiência pessoal, a escrever sobre a ditadura, mas que ainda assim a vive até o presente em suas sutis (ou não) consequências.
“Aprender a contar sua história como se não doesse. Isso foi, para Claudia, crescer: aprender a contar sua história com precisão, com crueza”, revela melancolicamente o livro. Essa é mais uma tortura da ditadura, Zambra parece apontar: a de nos forçar, em nome da sobrevivência, a naturalizar um pouco da violência imposta.
Trecho do livro
Uma vez me perdi. Tinha seis ou sete anos. Vinha distraído e de repente não vi mais meus pais. Me assustei, mas logo retomei o caminho e cheguei em casa antes deles – continuavam me procurando, desesperados, mas naquela tarde achei que tinham se perdido. Que eu sabia voltar para casa e eles não.
Você tomou outro caminho, dizia minha mãe, depois, com os olhos ainda chorosos.
Foram vocês que tomaram outro caminho, pensava eu, mas não dizia.
Meu pai, na poltrona, olhava tranquilamente. Às vezes acho que sempre esteve largado ali, pensando. Mas talvez não pensasse em nada. Talvez só fechasse os olhos e recebesse o presente com calma ou resignação. Naquela noite, no entanto, falou – isso é bom, me disse, você superou a adversidade. Minha mãe o fitava com receio, mas ele seguia alinhavando um confuso discurso sobre a adversidade.
Me recostei na poltrona em frente e fiz que dormia. Escutei-os brigar, no estilo de sempre. Ela dizia cinco frases e ele respondia com uma única palavra. Às vezes dizia, cortante: não. Às vezes dizia, à beira de um grito: mentira. E às vezes, inclusive, como os policiais: negativo.
Naquela noite minha mãe me carregou até a cama e me disse, talvez sabendo que eu fingia dormir, que a escutava com atenção, com curiosidade: seu pai tem razão. Agora sabemos que você não se perderá. Que sabe andar sozinho pelas ruas. Mas você deveria se concentrar mais no caminho. Deveria caminhar mais rápido.