“Só não diga o nome da editora”, pede o professor e bibliotecário Edson Nery da Fonseca, 85 anos, prestes a publicar seu livro de memórias Vão-se os dias e eu fico. São pouco menos de 200 páginas, escritas em três meses, em sua casa em Olinda. Volume aparentemente magro para alguém que conviveu de perto com alguns dos intelectuais que forjaram o século 20 no Brasil. Entre eles, os amigos Gilberto Freyre, Álvaro Lins, Manuel Bandeira e Murilo Mendes.
Revelar o nome da editora é detalhe insignificante diante das revelações que Edson Nery concedeu à reportagem do JC. O título da obra é extraído de um verso do francês Guillaume Apollinaire, e seu conteúdo ressalta o caráter combativo e crítico que marca a vida do autor. Enquanto memórias e biografias convencionais procuram detalhar os feitos de uma existência,Edson Nery acredita que o importante é justificar o que deixou de fazer. Assim, os capítulos têm como mote sempre perguntas em negativo: Por que não me casei?, Por que não me chamo Antônio?, Por que abandonei a Faculdade de Direito do Recife? Um deles é todo dedicado a Gilberto Freyre.
Edson Nery conta que conheceu Gilberto Freyre em 1941, quando o sociólogo tinha 41 anos e já havia escrito quase o fundamental da sua obra, Casa-grande & senzala e Sobrados e mocambos, só faltando Ordem e progresso. “Gilberto foi a maior influência da minha vida. Ele era um ser paradoxal sobre todos os aspectos. Uma vez o escritor Maximiano Campos levou o filho Antônio, ainda adolescente, para conhecer Gilberto Freyre. O que mais lhe impressionou na vida, questionou, audacioso? Resposta de Gilberto: ‘A verdade que existe nos paradoxos’”, lembraEdson Nery.
“Ele (Gilberto) foi um ser paradoxal em todos os aspectos. Foi vaidoso e modesto. Vaidoso porque se achava bonito, inteligente, ele achava que era um gênio. Mas quando estudava os problemas sociológicos, antropológicos e históricos, assumia uma posição de humildade. A verdadeira ciência, escreveu Gilberto, é humilde, ficando a ênfase para a meia ciência. Tanto é que alguns dos seus livros têm títulos como Em torno de..., A propósito de, Sugestões para... Nunca conheci um intelectual fascinante como ele”, vaticina Edson Nery.
Apesar dos elogios, o professos tem críticas a certas posições do sociólogo, como seu apoio à ditadura militar, o que só aumentou o ataque, segundo Edson Nery, dos intelectuais paulistas, principalmente os da USP, ao pernambucano. “O que eles alegam é que Freyre tinha uma visão dasociedade brasileira patriarcalista, que estava ao lado dos senhores de engenho, que romantizava a escravidão. Essa luta se acirrou quando foi instalada a ditadura no Brasil, e ele por um motivo resolveu apoiar a revolução (golpe), o que foi um passo mal-dado do ponto de vista político”.
“Na verdade”, explica Nery, “Freyre era amigo pessoal do presidente Castelo Branco. Minha interpretação, que minha amiga Sônia Freyre (filha de Gilberto) não gosta que eu diga, é a de que esse apoio só fez prejudicá-lo, por isso ele o retirou depois. O que ele queria? Quando o general Castelo Branco foi comandante da 7ª Região Militar e do 4º Exército, no Recife, ele ia muito a Apipucos com seu Estado-Maior para as reuniões do então Instituto Joaquim Nabuco, que promovia debates sobre a reforma agrária, inclusive com a presença de Francisco Julião”.
Segundo Edson Nery, quando Gilberto Freyre viu Castelo Branco na presidência da República enxergou a possibilidade de ser nomeado governador de Pernambuco, já que, na ditadura militar, os governadores eram indicados por Brasília e eleitos indiretamente pelas Assembléias Legislativas, “sempre agachadas e subservientes à ditadura”.
“Isso eu nunca perguntei a ele, por mais confidente que tenha sido dele e ele de mim – eu nunca ousei dizer a ele isso, era muito delicado. Minha interpretação: ele esperava que Castelo, sendo amigo dele, vendo o trabalho que fazia no Instituto Joaquim Nabuco, o indicasse para ser o governador de Pernambuco. Castelo Branco convidou (a escritora) Rachel de Queiroz, sua amiga íntima, para ser ministra da Educação e recebeu um não como resposta. Rachel sugeriu o nome de Freyre, que recebeu o convite do presidente com a resposta: ‘Muito obrigado, mas não vou aceitar porque no nosso País os superministérios são os da Fazenda e Planejamento e as Forças Armadas, e os subministérios, como o da Educação.’ Isso Gilberto me contou”.
Edson Nery não deixou de comentar o prefácio que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso escreveu para a primeira edição de Casa-grande & senzala lançada pela Editora Global. “Eu poderia qualificar aquele prefácio como obra de um morcego que morde e sopra. Porque eu li com muita atenção e verifiquei que, no fundo, no fundo, ele continua com as lições de seu mestre Florestan Fernandes, que era o maior antigilbertiano que havia neste País – Deus o tenha em bom lugar. A Global me consulta muito, mas nem sempre segue os meus conselhos. Eu indiquei enfaticamente o historiador inglês Peter Burke para prefaciar, mas Fernando Freyre (filho de Gilberto), que era muito teimoso – Deus que o tenha também em bom lugar – e bajulador de autoridade, achava que a fama do ex-presidente chamaria mais atenção. Fernando Henrique dá conferências bem-pagas, e fundou um instituto com seu próprio nome - uma vaidade quase doentia.”
Não é só o Gilberto Freyre político e intelectual que salta das lembranças de Edson Nery. A intimidade entre eles era tamanha que o sociólogo confidenciou-lhe certa vez, ao caminhar pelos jardins da Joaquim Nabuco, que tinha um grande amor de fim de vida. Apontando uma sala que tinha sido seu gabinete, disse: “aqui fui muito feliz com ela sem trair Magdalena”.
Edson Nery ressaltou ainda que foi várias vezes sondado para a Academia Pernambucana de Letras. “Mauro Mota, que foi presidente durante muitos anos, dizia poder bancar minha eleição. Se Gilberto Freyre dizia ser inacadêmico, eu sou muito pior, sou anti-acadêmico, porque não aguentaria viver com medíocres. Não tolero a mediocridade, peço perdão a Deus por não ser paciente com eles”, atesta.