Há duas imagens fortes no romance Ronda da noite (Rocco), do escritor francês Patrick Modiano. A primeira é o sue narrador, um agente duplo dentro da França ocupada por nazistas. Capanga da Gestapo francesa e infiltrado em um grupo de resistência, o narrador-protagonista se sente como uma “mariposa enlouquecida, voando entre uma lâmpada e outra e queimando cada vez mais as suas asas”. Tem remorsos em praticar a podridão completa, mas não consegue engolir a arrogância dos heróis.
Com ele, Modiano, Nobel da Literatura em 2014, cria neste seu segundo romance um homem sombrio, mais dúbio do que angustiado – alguém que se compara a Judas, um homem desconfiado que não espera nem de si e nem dos seus semelhantes uma salvação. Enquanto denuncia nomes da resistência (e é bem recompensado por isso), o jovem convive em uma casa abandonada com dois protegidos, Coco Lacour e Esmeralda, que o agradam justamente por não dizerem nada: são os únicos a receberem algum afeto porque é quase como se não existissem. Nesse cenário, o escritor tem a capacidade brilhante de ir atrás do que é humano dentro de um personagem que parece ter pouca humanidade, sem colocá-lo em nenhum extremo fácil.
Se esse narrador-protagonista é o corpo, Paris é o espaço que se confunde com ele e a segunda imagem densa da obra. Modiano compõe a escuridão da Cidade Luz de forma magistral. Quem assume o papel da polícia da ocupação alemã são criminosos de antes do início da guerra, “ratos que tomam posse de uma cidade depois que a peste dizimou seus habitantes”. A descrição do “ventre de Paris” – becos depois da Rua do Louvre – fala de uma “selva listrada de néons multicoloridos” e caixas derrubadas. A Paris literária de Modiano é uma cidade abandonada, em que o Champs-Elysées é um lugar abjeto e a podridão é regra. Tanto que o livro diz, em tom de verdade dolorosa: “Eu amava esta cidade. Meu berço. Meu inferno. Minha velha amante muito maquiada”.