SALÃO DO LIVRO DE PARIS

Machado de Assis ganha exposição na França

O projeto Machado de Assis, Le Sorcier de Rio, concebido e dirigido pelo professor pernambucano Saulo Neiva, homenageia o maior romancista brasileiro

Flávia de Gusmão
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Flávia de Gusmão
Publicado em 15/03/2015 às 5:00
Chico Porto
O projeto Machado de Assis, Le Sorcier de Rio, concebido e dirigido pelo professor pernambucano Saulo Neiva, homenageia o maior romancista brasileiro - FOTO: Chico Porto
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O primeiro livro que o professor de literatura comparada na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), e consultor do Conexões Itaú Cultural, o carioca João Cezar de Castro Rocha comprou foi Dom Casmurro. Ele tinha 8 anos de idade, juntou todas as moedas de que dispunha, foi ao armazém perto de sua casa e encontrou o romance de Machado de Assis que cabia no seu precário orçamento. “Comecei a lê-lo de imediato. Compreendi tudo: as palavras não eram rebuscadas e a estrutura das frases não me confundiu. No entanto, compreendi tudo, mas não entendia nada”. A surpresa o fez percorrer novamente o caminho do armazém, dessa vez levando para casa outro título do mesmo autor: Memorial de Aires. "A experiência se ampliou: compreendia cada vez mais e entendia cada vez menos. Nunca me esqueci e mantive como lema: na arte, o importante mesmo é esse momento em que se sabe que algo escapa à apreensão", recorda.

As primeiras lembranças do pernambucano Saulo Neiva, professor titular de literatura da Universidade Blaise Pascal, em Clermont-Ferrand, França, onde dirige a cátedra Sá de Miranda, também remontam à infância. Ouviu falar do autor consagrado antes de lê-lo. Citações em manuais escolares sobre contos como O apólogo ou poemas como Círculo vicioso e Menina e moça são, como ele reporta, “lembranças antigas de penetração no mundo machadiano”. Para Neiva, esta apresentação, carregada com o peso de uma reverência institucional, está bem distante do convívio revigorante que Machado de Assis lhe inspiraria mais tarde. “Quando, na época, atravessei essa portinhola, eu nem imaginava os inúmeros cômodos que me esperavam lá atrás – seus melhores romances e contos, suas deliciosas crônicas, suas aguçadas críticas literárias”, confirma.

Esses dois pesquisadores – e outros mais – se encontram nesta segunda-feira em Paris, reunidos pelo objeto de interesse em comum: o maior romancista brasileiro e sua obra. Saulo Neiva é o criador e diretor do projeto Machado de Assis, le Sorcier de Rio, que engloba debates, palestras, reedição de obras machadiana por três grandes editoras francesas e a confecção de um dossiê pedagógico orientando professores franceses do ensino fundamental sobre uma iniciação à leitura a partir de Conto de escola ( 1896). O empreendimento de fôlego, que tem coordenação do Centre de Recherches sur les Littératures et la Sociopoétique (CELIS EA1002), da Universidade Blaise Pascal (Clermont II), contou com o apoio de vários parceiros: Academia Brasileira de Letras (ABL), Unesco, Bibliothèque Nationale de France (BNF), a curadoria da presença do Brasil no Salão do Livro de Paris, a prefeitura de Clermont-Ferrand, o Conseil général du Puy-de-Dôme, a SNCF, Festival Vidéoformes e CIC Iberbanco.
A programação tem início amanhã, na Casa da América Latina, na capital francesa, com uma sequência de encontros com especialistas em busca da tal apreensão citada por João Cezar de Castro Rocha, sempre tão fugidia na obra machadiana. Mas a cereja do bolo, por assim dizer, será a exposição que leva o mesmo nome do projeto e toma como fio condutor a ligação entre o fundador da Academia Brasileira de Letras e sua cidade natal. Ela estará aberta ao público também a partir de amanhã, na sede da Unesco, em Paris. A vernissagem acontece quarta-feira, 18, às 18h, com a presença de Eliana Zugaib, embaixadora do Brasil junto à entidade, e Geraldo Holanda Cavalcanti, pernambucano presidente da Academia Brasileira de Letras. A exposição, que segue em cartaz até o dia 20 de março e depois se torna itinerante, faz parte da programação oficial do Salão do Livro de Paris, que este ano homenageia o Brasil.

13 PAINÉIS E UM AUTOR

Ao se referir a Machado de Assis como O Bruxo do Rio de Janeiro (Le Sorcier de Rio), Neiva, que também é curador da mostra, amplia o alcance do apelido O Bruxo do Cosme Velho (bairro carioca onde o escritor morou a maior parte da vida), que ficou atrelado a Machado de Assis graças ao poema A um bruxo, com amor, de Carlos Drummond de Andrade. Assim procedendo, Neiva indica, com precisão, uma avenida principal a partir da qual se pode descobrir os muitos Machados dentro de Machado. A via fica claramente demarcada em um dos 13 painéis que compõem a exibição. Nele, o curador lembra que a mágica machadiana, o que torna sua obra singular, é a densidade psicológica e a lucidez social que, combinadas com humor e ironia, representam as contradições humanas. O “bruxo” sempre ancorou seus textos nas pessoas e na paisagem do Rio de Janeiro do século 19, e essa interação exige uma leitura constante, tão inesgotável que parece ser tarefa para uma existência inteira.
Assim tem sido com o próprio mentor do projeto. Foram várias as etapas no convívio de Saulo Neiva com Machado de Assis. A partir da aproximação superficial na infância veio o contato escolar mais aprofundado, em seguida, a leitura do autor como uma escolha livre, mais tarde o foco universitário e, finalmente, a presença recorrente dos textos do grande romancista brasileiro, uma vez que o pesquisador voltou a frequentá-los diversas vezes e por razões diferentes: como professor, crítico e tradutor. A editora Classiques Garnier, por exemplo, herdeira da editora original do autor, publicou a primeira edição bilíngue da coletânea de contos Várias histórias/ Histoires diverses com tradução, edição e notas por Saulo Neiva).“Várias camadas de interpretação do texto foram assim se acumulando em mim. Ao iniciar a elaboração da exposição desejei colocar esse saber acumulado ao serviço de um objetivo: fazer com que instituições, pesquisadores, tradutores, editores, trabalhassem juntos para contribuir para a circulação do texto machadiano na França”, resume.

A exposição Machado de Assis, le Sorcier de Rio, ao mesmo tempo em que apresenta novas dimensões de (re) conhecimento da vida e da obra do escritor e fundador da Academia Brasileira de Letras (ABL), pontua a relação íntima que ele desfrutava com sua cidade natal, o Rio de Janeiro, que em 2015 comemora 450 anos. A mostra costura esta simbiose entre homem e urbe através dos painéis com títulos-convites que provocam e atraem: “Você conhece Machado de Assis”, “Por que o bruxo do Rio?”, “Vamos mergulhar na sua época”, “Machado é mesmo um milagre?”, “Rascunho de abecedário”, “Biblioteca virtual para compartilhar”, “Rio, laboratório da alma humana”, “Retrato do autor enquanto grande leitor”, “Machado traduzido e retraduzido”, “Um apólogo para todos”, Machado de Assis e os alunos de hoje”, sendo o último deles reservado para os créditos da exibição. Grande parte dos painéis disponibiliza recursos de interatividade, como forma de atingir um leitorado diverso, desde o aluno do ensino fundamental, até o leigo amador de boa literatura. O visitante é convidado a descobrir vídeos, baixar textos do autor e visitar sites, através de QR codes

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