SÉTIMA ARTE

O centenário de Orson Welles, revolucionário do cinema

A trajetória do criador do clássico 'Cidadão Kane' foi marcada por uma desastrosa passagem pelo Brasil durante a Segunda Guerra

Diogo Guedes
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Diogo Guedes
Publicado em 06/05/2015 às 5:17
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A trajetória do criador do clássico 'Cidadão Kane' foi marcada por uma desastrosa passagem pelo Brasil durante a Segunda Guerra - FOTO: Reprodução
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Poucos pessoas chegaram ao ápice tão cedo quanto o cineasta americano Orson Welles (1915-1985). Em 1941, aos 25 anos, o diretor, ator, roteirista e produtor estreou como realizador criando uma das obras-primas do cinema mundial, Cidadão Kane. Autor de uma verdadeira revolução na sétima arte, ele viu, no entanto, seu auge (ou, ao menos, seu prestígio) passar logo. No ano seguinte, convidado pelo Departamento de Estado dos EUA, interessado em fortalecer laços culturais com a América Latina, ele viria ao Brasil filmar dois episódios da trilogia É tudo verdade, intitulados Carnaval e Quatro homens e uma jangada. A viagem, que passaria pelo Rio de Janeiro, Fortaleza, Salvador, Ouro Preto e Recife, teria um papel decisivo na sua vida: seria chamada por ele do “desastre central da sua carreira”.

Hoje, quando o mundo celebra os 100 anos de nascimento de Welles, vale lembrar essa passagem pela por terras brasileiras. Primeiro, ele se esbaldou vivendo pelo Cassino da Urca (conta-se que jogou um piano pela janela do Copacabana Palace) e filmando o furor carnavalesco do Rio de Janeiro. Depois, decidiu filmar outra história passada no País: a viagem de 61 dias de quatro jangadeiros, que foram de Fortaleza ao Rio para chamar a atenção do então presidente Getúlio Vargas para os problemas dos pescadores.

As gravações, no entanto, foram marcadas por uma tragédia. Quando os quatro homens que inspiraram a história recriavam a cena da chegada ao Rio de Janeiro em uma jangada, um deles, Jacaré, caiu no mar. Seu corpo nunca foi encontrado, e o projeto de Welles ficou abalado. Ele chegou a continuar a história como uma homenagem, indo a Fortaleza. Mas, com o orçamento estourado e enfrentando a desconfiança do seu estúdio, RKO, nunca conseguiu concluir as gravações, que ficaram perdidas até os anos 1980.

“A partir desse fracasso, a carreira dele, nos Estados Unidos, acaba. Welles foi obrigado a ir buscar recursos na Europa, com uma trajetória muito acidentada. Até voltou a filmar nos EUA, mas nunca mais seria a mesma coisa”, recorda o cineasta e escritor pernambucano Fernando Monteiro, fã e colecionador de material sobre Welles. “Afinal, você não passa pelo Brasil impunemente.”

No caminho para filmagens na capital cearense, Welles parou no Recife por dois dias. Participou de debates sobre o cinema mudo, deu depoimentos para os jornais locais, filmou jangadeiros no Pina e, principalmente, viveu a noite recifense, acompanhado do jornalista Caio de Souza Leão, do fotógrafo Benício Dias e do poeta Tomás Seixas. Fernando Monteiro ouviu diversas vezes Tomás relatar esses encontros. Os quatro passaram a madrugada pelos bares, terminando a noite com uma cena inusitada: estavam na Ponte Buarque de Macedo quando Welles decidiu, de rompante, entoar A marselhesa (hino da França), acompanhado pelos jovens amigos.

“Tomás ainda dizia que pôde fazer uma pergunta fundamental a Welles. Ele quis saber se Welles achava que, em algum outro canto do mundo, seria possível acontecer uma história parecida com a sua – a de um diretor que, aos 25 anos, realizava um filme com ampla liberdade criativa. O cineasta respondeu: ‘Eu acho que só seria possível lá mesmo’”, relembra Fernando.

A passagem, é claro, virou parte do imaginário pernambucano, como tantas outras – Rossellini, Sartre e Camus são exemplos disso. O curta That's lero lero, de Amin Stepple e Lírio Ferreira, recriou ficcionalmente esses dois dias no Recife. Em uma crônica, Antonio Maria afirma que levou o diretor para um cabaré e, lá, o viu apreciar um frevo. “Welles ouviu com os olhos abertíssimos (...) e disse que era espantoso. Mas achou que o frevo jamais sairia do Recife. Discordei”, conta o cronista.

COLEÇÃO
Welles, para Fernando Monteiro, é um dos três principais revolucionários do cinema, junto a Serguei Eisenstein e Jean-Luc Godard. “Ele transformou a profundidade de campo do cinema, inseriu a narrativa retrospectiva. Eu gosto até desse lado mais charlatanesco da personalidade dele, de criança genial e amostrada”, comenta. “Cidadão Kane mexeu com as minha medidas.”

A admiração por Welles levou Fernando a começar a colecionar objetos importantes, principalmente ligados a Cidadão Kane. Um dos seus preferidos é a edição especial do roteiro da película, com prefácio do montador Robert Wise. Junto com o livro, ele guarda autógrafos de quase todos os envolvidos no filme (incluindo o de Welles), que foram recolhidos ou adquiridos ao longo de anos. A única ausência é a de Wise.

Há um raridade brasileira também na coleção: um telegrama datilografado, com assinatura de Welles, que o diretor enviaria para os Estados Unidos. “Na carta, ele reclama com a produtora sobre o filme Soberba. Comprei de alguém no (site) Mercado Livre, depois de ver que era original”, explica. “Essa busca por coisas dele se tornou até algo meio obsessivo.”

HOMENAGENS
O centenário de um dos mais influentes cineastas de todos os tempos não poderia passar em branco. A principal homenagem vem do Festival de Cannes, que começa no dia 13 deste mês. Três filmes foram resgatados para serem exibidos em alta qualidade, no formato 4K: Cidadão Kane, A dama de Xangai e O terceiro homem. Outra novidade aguardada para o centenário, o lançamento do filme The other side of the wind, última película filmada pelo diretor, teve sua finalização adiada por falta de investidores.

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