No meio do que a crítica resolveu chamar de poesia marginal, com sua contestação de formalismos, crítica política e reinvenção da cadeia editorial, havia bem mais do que os poemas breves e bem humorados herdados do modernismo de Oswald de Andrade e Manuel Bandeira. Vários poetas como Waly Salomão, Ana Cristina César e Paulo Leminski oscilavam entre a erudição e a simplicidade, mas, no caso de um dos pioneiros da geração, o poeta mineiro Afonso Henriques Neto, a singularidade é ainda maior: sua obra passa, como ele mesmo aponta, mais pelos extremos do surrealismo e do beat somados a Drummond e Murilo Mendes.
Um dos nomes presentes na icônica coletânea 26 Poetas Hoje, organizada por Heloísa Buarque de Hollanda, Afonso está no Recife, onde lança nesta quinta (30/7) seu mais recente livro, A Outra Morte de Alberto Caeiro (Circuito), às 19h30, no Espaço Pasárgada. Ao longo da noite, o poeta participa de um bate-papo com Cida Pedrosa, Delmo Montenegro e Luis Serguilha, discutindo a obra e trajetória do autor.
No volume, com 49 poemas, Afonso dialoga com um dos heterônimos de Fernando Pessoa. “Sempre mantive com Caeiro uma salutar esgrima, pois o meu heterônimo preferido é o Álvaro de Campos, que se coloca na condição de antípoda de Caeiro. Campos era um engenheiro moderno mergulhado em dúvidas existenciais e profundos ceticismos. Contudo, toda vez que voltava a Caeiro me surpreendia com a qualidade poética dele”, conta, em entrevista ao JC.
Além disso, Afonso é parte de uma estipe literária: é neto do poeta grande simbolista Alphonsus de Guimaraens, que era sobrinho-neto do romancista Bernardo Guimarães, autor de A Escrava Isaura. Além disso, seu pai, Alphonsus de Guimaraens Filho, também foi escritor. Por conta da grande amizade dele com Drummond e Bandeira, o autor pode conviver com dois mestres modernistas. “Manuel Bandeira foi padrinho de casamento de meus pais. Carlos Drummond de Andrade talvez tenha sido o maior amigo que meu pai teve”, cita. Confira a entrevista completa abaixo.
JORNAL DO COMMERCIO - Você estabelece um diálogo com o heterônimo de Fernando Pessoa em A outra morte de Alberto Caeiro. A obra tem o mesmo número de poemas, mas repensa as ideias do pastor sem rebanho. Como foi tentar desvendar Caeiro, como fizeram Ricardo Reis e Álvaro de Campos? Por que Caeiro ainda o provoca, já no século 21?
AFONSO HENRIQUES NETO - Fernando Pessoa construiu, para além da sua própria identidade, três heterônimos de enorme força: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Com ironia, Pessoa chegou a dizer que fazia isso para enriquecer a poesia portuguesa, segundo ele tão pobre de grandes nomes em seu tempo. A poesia de Pessoa, do mesmo jeito que o Quixote e o Hamlet, é atemporal. Leio Caeiro no século 21 com o mesmo interesse de quando o descobri bem jovem na década de 1960. Sempre mantive com ele uma salutar esgrima, pois o meu heterônimo preferido é o Álvaro de Campos, que se coloca na condição de antípoda de Caeiro. Campos era um engenheiro moderno mergulhado em dúvidas existenciais e profundos ceticismos. Contudo, toda vez que voltava a Caeiro me surpreendia com a qualidade poética dele. Resolvi, assim, falar de meu paradoxal mal-estar em relação às ideias tão puras contidas nesse pastor sem rebanhos, nesse pagão dono do mais radical naturalismo que jamais li em poesia, e que, por sua radicalidade, nunca deixou de me provocar e de certo modo me encantar.
JC - Seu início na poesia é normalmente relacionado à poesia marginal. Sente-se de fato ligado à poética e ao movimento? Até onde ele é importante para entender sua poesia?
AFONSO - Poesia marginal para mim é apenas um rótulo que a crítica necessita tanta vez construir para marcar um período. Pertenço a essa geração na medida em que produzi meus primeiros trabalhos em plena ditadura militar, editando livros independentes que eram lançados fora do circuito comercial das livrarias. Era tempo de censura total, tempo de tortura e pesadelo. Em 1975, a Heloísa Buarque de Holanda recebeu o convite de uma editora espanhola, que estava se estabelecendo no Rio de Janeiro, para realizar uma antologia da poesia daquele conturbado momento. Daí surgiu a 26 poetas hoje, antologia até hoje muito vendida e estudada. Estou nela, junto com os nomes de Torquato Neto, Ana Cristina Cesar, Cacaso, Chacal, Roberto Piva, Bernardo Vilhena, Francisco Alvim, Wally Salomão e tantos outros, todos então amigos meus (muitos, infelizmente, já falecidos). Quanto ao meu estilo poético, sempre segui um excelente conselho de meu pai para ser o mais autêntico possível. Desse modo, sempre escrevi conforme minhas inclinações poéticas determinavam. E, assim, minhas maiores e determinantes influências no início de minha carreira foram Murilo Mendes, Jorge de Lima e Drummond, no Brasil. Fora daqui, os surrealistas, os beats, Lorca, Rimbaud e os prosadores Julio Cortázar, Borges e Kafka. Isso fez com que, de certa forma, eu me afastasse da tendência dominante da chamada geração marginal, bastante marcada pelo coloquialismo de um Oswald de Andrade, por exemplo. Mas isso não quer dizer que eu não tenha, no meu trabalho, também muitas marcas dessa geração.
JC - Um movimento como o da poesia marginal ainda seria importante para a poesia contemporânea? Ela se tornou parte do academicismo que combatia?
AFONSO - Como assinalei, a poesia marginal tem muito que ver com o que a minha geração passou na década de 1970, época de ditadura violenta. Estamos em outro tempo e as novas gerações certamente apresentam outras preocupações. Mas é bom que se diga que a literatura dita marginal não pode ser confundida com mais um “academicismo”. Ao contrário, ela se notabilizou pela rebeldia contra tudo que pudesse controlá-la. Inclusive nunca se sujeitou aos vanguardismos das décadas de 1950 e 1960 (concretismo, práxis e poema-processo).
JC - Seus versos vão bem além da brevidade e simplicidade de alguns poemas marginais famosos - têm delírios e verborragias, por exemplo. O que mais lhe preocupa na sua escrita poética? Que temas ou momentos te despertam para a escrita?
AFONSO - Talvez possa me definir como um neobarroco. Escrevi também poemas curtos de que gosto muito, mas o principal de minha poesia tem que ver mesmo com a poesia de longo fôlego. A Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima, muito me influenciou nesse sentido.
JC - Você teve oportunidade de conhecer alguns dos grandes poetas brasileiros, como Drummond e Bandeira. Como foi conviver com eles? Lembra de alguma história de visitas ou encontros?
AFONSO - Manuel Bandeira foi padrinho de casamento de meus pais. Carlos Drummond de Andrade talvez tenha sido o maior amigo que meu pai teve. Desse modo, pude conviver bastante com eles. Bandeira ia muito lá em casa quando eu era pequeno e depois adolescente. Me lembro de quando, na adolescência, me enchi de coragem e, depois de um almoço dominical, coloquei na frente dele alguns poemas meus. Os poemas eram obviamente ruins, mas ele foi muito simpático, deu bons conselhos e boas gargalhadas com a minha falta de graça. De Drummond, entre tantos encontros, recordo de um dia em 1977 em que fomos meu pai, eu e meu irmão Luiz Alphonsus (que é artista plástico) visitá-lo. Meu irmão levou uma máquina fotográfica, e qual não foi nossa surpresa quando Drummond pediu para ser fotografado, e do sofá e da cadeira passou para o chão, chegando a se deitar lá. As fotos ficaram fantásticas, e até hoje algumas delas servem de capa para edições novas realizadas pela editora Companhia das Letras, conforme vi recentemente.
JC - Seu avô e seu pai são também partes fundamentais das literatura brasileira. De alguma forma, escrever com essa herança é um peso? Foram leituras importantes na sua vida, também?
AFONSO - Nasci em uma família de escritores. O primeiro grande nome foi Bernardo Guimarães, poeta e romancista romântico, autor do conhecido romance A escrava Isaura. Ele era tio-avô do poeta simbolista Alphonsus de Guimaraens, meu avô. O filho mais velho de meu avô é o contista e romancista João Alphonsus, meu tio. Meu pai, Alphonsus de Guimaraens Filho, é o filho mais novo. Confesso que nunca considerei um peso escrever em meio a nomes dessa ordem de grandeza. Sempre botei na cabeça que devia lutar para escrever da melhor maneira que pudesse, sem nunca imaginar comparações, já que isso é totalmente impossível. Cada escritor é filho de seu tempo e de sua circunstância. Tenho muita admiração por todos eles. Sofri influências, é claro, mas penso ter conseguido alcançar a minha própria voz.