"MINHA LUTA"

Autores, editores e críticos falam sobre publicação de Mein Kampf, livro de Hitler

A obra deve ser publicada neste ano por duas editoras diferentes, apesar do protesto de leitores e militantes

Diogo Guedes
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Publicado em 19/01/2016 às 5:37
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A obra deve ser publicada neste ano por duas editoras diferentes, apesar do protesto de leitores e militantes - FOTO: Reprodução
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Dizem que os livros podem ser armas contra o poder e a opressão, e, de fato, ele são, mas há casos do contrário. Durante o regime nazista, na Alemanha, era de bom tom que todos tivessem um exemplar de Mein Kampf, ou Minha Luta, autobiografia e ideário político do então líder do país Adolf Hitler. Criado pela mistura – sempre danosa – de ódio e pseudociência e argumentação, o volume chegou a ser um presente comum a crianças recém-nascidas. Mein Kampf foi uma das armas cruéis para a ascensão, justificação e manutenção de uma das maiores barbáries que a humanidade já viveu.

Neste ano, os dois volumes que compõem a obra, um escrito em 1925, quando Hitler estava preso, e outro concluído em 1926, entraram em domínio público em alguns países, inclusive no Brasil – pela lei, no ano seguinte aos 70 anos de morte de um autor, suas produções podem ser publicadas por qualquer. O anúncio de novas edições de Minha Luta no Brasil provocou polêmicas e debates. Uns defendem que é conhecer a obra é uma forma de ver como o pensamento de Hitler era distorcido, outros alegam que, mesmo com notas explicativas e uma introdução crítica, o livro poderia servir para despertar o ódio que marcou o nazismo.

Na Alemanha, depois de várias décadas, o governo da Baviera, que detém os direitos autorais da obra, liberou uma edição comentada do volume, destinada a pesquisadores e professores. A edição com tiragem de 3 mil exemplares recebeu, no entanto, 15 mil pedidos na pré-venda. Por aqui, a Edipro, que publicaria uma edição em janeiro, com uma adaptação da tradução e das notas feitas em 1930, desistiu na semana passada da empreitada, por conta da pressão do público.

Duas editoras ainda têm Minha Luta nos seus planos. A Centauro, na verdade, já tem a obra no seu catálogo: é possível encontrar o volume em sebos sem nenhuma nota ou comentário. Agora, vai relançá-la. No seu site, simplesmente avisa: a editora “em absoluto, não apoia nem respalda, por nenhum meio ou forma, a ideologia ou os conceitos doutrinários de seu autor, declarando, expressamente a neutralidade de seu posicionamento como editora, de apenas disponibilizar seu conteúdo, o qual, embora polêmico – e em alguns casos, odiado – simboliza um marco histórico – infelizmente trágico – da história da humanidade”.

A outra edição de Minha Luta sai pelas mãos da Geração Editorial em março. Para o volume, foi encomendada uma nova tradução, feita direto do alemão por Wilian Lagos, notas críticas da edição americana de 1939 e textos de apoio de professores Nelson Jahr Garcia (USP, já falecido) e Eliane Hatherly Paz (PUC-Rio) e do editor Luis Fernando Emediato. A obra terá cerca de 1.000 páginas, 600 delas do original.

Até agora, por conta da movimentação de leitores, há também uma esboço de boicote de livrarias. A rede Livrarias Curitiba já anunciou que não vai colocar nas suas prateleiras a obra. Já a Livraria da Travessa comentou que não vai deixar de ter a obra no catálogo, mas não deve promovê-la de nenhuma forma. Segundo o escritor paulista Ricardo Lísias, apesar de não terem informado oficialmente, as livrarias Cultura e Saraiva também não devem receber o volume.

CONTROVÉRSIA
O próprio Ricardo Lísias foi um dos que se posicionou contra a publicação do livro pelas editoras brasileiras. Ele ressalta que a edição que sai na Alemanha tem intenção de ser distribuída para instituições, ao contrário do intuito comercial no Brasil. Seria uma tentativa de ter lucro com um livro criado a partir do ódio – afinal, não é difícil encontrar o conteúdo de Minha Luta na web.

A poeta pernambucana Adelaide Ivánova, que mora em Berlim, comenta que é contra a proibição da publicação de qualquer livro. “Isso não significa que um livro, só porque não é mais proibido, deva ser publicado. Minha Luta podia ficar lá nos confins do esquecimento, ignorado pela grande bosta que é”, comenta a autora. Ela ainda acha o momento inoportuno no Brasil, porque a nossa direita “não somente é iletrada como também é ignorante”. E faz outro alerta: “O livro é ruim!”

Apesar de ser a favor de edições de Minha Luta com comentários críticos, o crítico e professor da UFPE Anco Márcio Tenório explica que a obra de Hitler é diferente de outros livros que terminaram inspirando violência ou ditaduras através de suas “grandes utopias”. “Tenho muito medo de todo aquele que se acorda um dia, olha o mundo e as suas mazelas, e proclama a solução de todas as suas moléstias”, analisa.

Anco explica que Bíblia e o Alcorão, por exemplo, têm duas chaves de leitura: podem ser lidas por suas “pequenas utopias”, como a do amor ao próximo, e por suas “grandes utopias” de “um Ser que acredita que a Queda pode ser revertida por meio de sentenças terríveis”. É essa segunda parte que gesta horrores como as Guerras Santas, as Inquisições e os fundamentalismos evangélicos e islâmicos. “Minha Luta é uma obra que só possui uma única chave: o do maior libelo de ódio contra a humanidade e tudo que possa defini-la enquanto tal: a sua diversidade étnica, sexual, religiosa, política, cultural”, define.

Publicar ou não publicar Mein Kampf? Autores e pesquisadores respondem.

Adelaide Ivánova, poeta
Simone Weil, em “A gravidade e a graça”, desafia: será que o mal existe quando não o fazemos? Por não ter a menor dúvida de que sim, ele existe, é que não vejo sentido na reedição de “Minha luta”. Não caio nessa de que reeditá-lo “evita que ele caia no esquecimento” ou “é para que a História não se repita”. Esquecemos as desgraças por sobrevivência ou desinteresse, não porque Hitler saiu das prateleiras. Se o objetivo fosse nobre mesmo (como defendeu Luis Fernando Emediato), então que se reedite mais e melhor gente como Paul Celan, Anna Akhmatova, Suad Amiry e muitos outros. A melhor maneira de não esquecermos as tragédias globais é dar voz não aos algozes, mas sim aos que sofreram nelas. Isso sim é legítimo. Até porque, como diria a mesma Simone Weil (reeditem Simone também!), o mal é monótono e nele não há nada de novo.
 
Anco Márcio Tenório Vieira, crítico e professor da UFPE (confira aqui o artigo completo)
Minha Luta é uma obra que só possui uma única chave: o do maior libelo de ódio contra a humanidade e tudo que possa defini-la enquanto tal: a sua diversidade étnica, sexual, religiosa, política, cultural. Em suas páginas, a humanidade é dividida entre os que são moralmente e biologicamente “superiores” e os que são, por subtração, quase uma sombra dessa humanidade: os animalizados. Tudo isso calçadas em supostas verdades científicas, em documentos forjados, e na “virtude” de encerrar todos os fantasmas, demônios, mentiras e mitos que a humanidade criou e cultivou ao longo de milênios sobre o outro, o diverso; não apenas encerrá-los, mas fazê-los tomar corpo e alma ao se tornarem política de Estado. (...)
Mesmo com todos os riscos, mesmo sabendo da profunda indigestão, intoxicação e morte que esse fruto pode causar em quem dele se alimente, sou a favor que ele seja exposto nas prateleiras das livrarias. No entanto, assim como determinados alimentos trazem o aviso de que a sua ingestão indiscriminada pode levar à morte, Minha Luta também precisa trazer um prefácio crítico que o situe no tempo e no espaço, eruditas notas de rodapé que esclareçam ao leitor todas as supostas verdades científicas encerradas por uma das mentes (Hitler) e um dos regimes mais doentios que a humanidade já produziu: o Nazismo.
 
Sidney Rocha, escritor
Não li. Mas contra ele promovo radicalidades: escrito, não deveria ser publicado. Publicado, não deveria ser divulgado. Divulgado, não lido. Lido, esquecido. Minha luta será sempre pelos direitos humanos e pela vida. Não entendo a razão de tanto interesse pelo livro. Não se pode ganhar grana sobre tantos cadáveres e tanta destruição. Não se trata de censura, aviso aos radicais da ‘liberdade’. Para se compreender o passado e não repetir erros não precisamos apresentar os manuais dos torturadores, as cartilhas do algozes, o psicologismo dos opressores, as sublimes motivações dos covardes.
 
Wellington de Melo, escritor e editor
Como editor e como cidadão me envergonho. Primeiro, porque expõe a realidade de boa parte do mercado editorial tradicional, essa busca inescrupulosa pelo lucro. Segundo, porque o que me preocupa não é o fato de ser liberada ou não a edição do livro, se ela teria notas ou ressalvas - algo como um salvo conduto para os editores publicarem dizendo "não pensamos assim" - mas viver num país que editores cogitem essa ideia, o que significa dizer que há leitores para esse tipo de livro, que há mercado. O argumento de que é um livro que precisa ser estudado não justifica uma edição comercial - há anos quem quiser estudá-lo encontra cópias na internet. Infelizmente não serão estudiosos os que lerão, mas simpatizantes daquele ideário absurdo, o que é lamentável.

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