Não foi por acaso que o missionário português Manoel da Nóbrega vaticinou, ainda no século 16, que o processo de pacificar e dominar os índios brasileiros se daria “mais por medo do que por amor”; expulsos pelos colonizadores para longe do litoral, os povos nativos foram perseguidos até o interior do Brasil. Pesquisadoras de longa data desse processo, as historiadoras Socorro Ferraz e Bartira Ferraz Barbosa apresentam agora o resultado de anos trabalho: o volume Sertão: Fronteira do Medo, publicado pela Editora da UFPE, com recursos do Funcultura.
A obra ganha lançamento quarta (20), às 19h, na Arte Plural Galeria. No volume feito a quatro mãos, as duas autoras, mãe e filha, respectivamente, abordam tanto a ocupação indígena pré-colonização como também o contato, as guerras e até as negociações com a Coroa Portuguesa e os missionários religiosos.
Como o título sugere, o Sertão era um território de medos: os mapas europeus da época sugeriam o espaço como amedrontador. Ao mesmo tempo, o medo era o modo de lidar com as populações nativas. “Quando Manoel da Nóbrega fala ‘mais por medo do que por amor’, ele está assinando a ideia de que era preciso render os índios pelo medo. Isso perpassa toda nossa pesquisa. Houve uma desclassificação, uma desconstrução da cultura indígena para se ter a terra e o braço indígena”, comenta Bartira.
A pesquisa das duas sobre o tema começou desde os anos 1990. “Os trabalhos se complementavam. Eu pesquisei a parte mais antiga, do século 16, quando não há muita documentação. Parte da inovação da pesquisa vem do resgate do Arquivo Histórico Ultramarino da Capitania de Pernambuco, que estava em Portugal. Foram quase dois anos para trazer toda a documentação”, relata Socorro. Com esses arquivos e também com os mapas da época, foi possível ver que a população indígena no interior de Pernambuco era bem maior do que se pensava.
Socorro ainda comenta que a vinda dos colonos portugueses “criou um caos na ordem que existia anteriormente”. Quando teve dificuldades para ter uma dominação completa, a Coroa Portuguesa criou uma legislação que, por exemplo, restringia os povos indígenas (e seus missionários) a áreas específicas. Como ela diz, a fórmula de “vigiar e punir”, descrita por Foucault, foi invertida aqui: primeiro se punia – com execuções bárbaras de índios que eram postos na boca dos canhões e mortos sob o olhar de outros prisioneiros – para depois vigiar.
“Pesquisas mostram que o Brasil tem uma grande parte de sangue índio na sua população. Essa presença do índio no brasileiro, no entanto, se deu pelos casamentos e outras interações, nunca pela inclusão dos índios e das suas próprias culturas. Eles entraram na população brasileira como subordinados”, comenta Socorro.
Bartira ainda ressalta que o livro mostra outro aspecto importante da história silenciada dos indígenas. Mais do que meras vítimas de um massacre dos colonizadores, eles foram parte ativa da história, fazendo guerras, negociações e acordos. Seu mais recente interesse de pesquisa é sobre os índios que foram intermediários entre europeus e nativos e que, por vezes, usavam o alfabeto para escrever em tupi. “Eles foram colaboradores importantes até de mapas feitos nos séculos 16, 17 e 18”, destaca a historiadora.
Um dos efeitos nefastos desse apagamento da presença indígena é visto na estrutura das universidades brasileiras. Ainda que recentemente tenha sido regulamentada a cadeira de história da África, o passado dos povos nativos não é elemento obrigatório nos currículos. Bartira, no entanto, celebra ao menos o maior interesse recente pela questão, marcado em livros como O Rio Antes do Rio, de Rafael Freitas da Silva. “É um tema que precisa de muitas pesquisas, tanto na academia como na divulgação”, comenta.