GEOGRAFIA AFETIVA

Aplicativo mostra a literatura que existe nas ruas recifenses

O Ruas Literárias do Recife traz textos sobre mais de 150 pontos da cidade

Diogo Guedes
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Diogo Guedes
Publicado em 28/08/2016 às 5:05
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O Ruas Literárias do Recife traz textos sobre mais de 150 pontos da cidade - FOTO: Divulgação
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O Recife é uma cidade construída de muitos imaginários. Para uns, um lugar idealizado pela nostalgia ou pelo bairrismo; para outros, um local histórico, ainda que abandonado ou destruído pelo poder público e privado. Em ambos casos, parece ser inevitável – para quem se dá o direito da atenção – ver a capital pernambucana a partir dos afetos, entre amores e desilusões que datam de muito antes das evocações do Recife.

Apaixonado por literatura e interessado em falar da história e do imaginário que existe além do concreto, o cineasta Eric Laurence tirou de uma conversa com a escritora e pesquisadora Luzilá Gonçalves a ideia de reunir, em um aplicativo, referências em textos literários a ruas e espaços da cidade. Nascia assim o projeto Ruas Literárias do Recife, que, através do Funcultura, saiu do papel e já está disponível para download em dispositivos Android e iOS.

“A ideia foi um estalo. Estava na véspera do fim do prazo do Funcultura e, em uma semana, eu pesquisei iniciativas parecidas e escrevi o projeto”, comenta Eric. Com o aplicativo, o diretor queria incentivar que as pessoas travassem contato com visões poéticas e críticas da capital pernambucana e estabelecessem uma relação mais afetiva com a cidade e seus pontos importantes.

“Na época isso estava muito em discussão no Recife, com o Ocupe Estelita e debates urbanos. Eu senti necessidade de, através da arte e da poesia, estimular as pessoas a pensarem nessa relação afetiva com o espaço urbano e a memória dele”, explica o criador. “Nada melhor do que a literatura para isso, porque ela acompanhou, ao longo dos anos, as mudanças urbanas. Desde muito tempo atrás os escritores falam dessa memória da cidade e das mudanças, gente como Bandeira, Joaquim Cardozo, João Cabral.”

Estão lá muito mais do que os pontos óbvios, como a Rua da União ou o Rio Capibaribe – é possível encontrar a Rua da Concórdia e o Beco da Facada, por exemplo, além de autores como Miró, Solano Trindade, Cícero Belmar, José Teles e Micheliny Verunschk. Para achar referências mais obscuras, Eric contou com a ajuda de parceiros. Boa parte da pesquisa foi feita por Luzilá Gonçalves, com colaboração posterior de Cecília Villanova. A tarefa delicada de dar um padrão aos textos foi tocada pela jornalista e curadora Olívia Mindêlo, que assina a edição geral. A Ideiaimagem foi a coprodutora do aplicativo.

O projeto previa que 100 pontos ganhassem referências literárias associadas a eles. “Terminamos com 150 e só paramos porque precisávamos prestar contas, dar um ponto final. É uma vontade de todos que o projeto continue de alguma maneira, seja atualizado com novos autores, mas não temos como prever isso agora. O que queremos no momento é ver as pessoas interagindo com a cidade. Fizemos tudo com muito carinho, acho que muitas coisas ainda podem surgir dele”, adianta Eric.

Segundo Olivia, foi importante tentar criar um panorama diverso da cidade e da literatura pernambucana – não por acaso, Recife é uma das cidades brasileiras mais referenciadas e homenageadas. “Eu tinha percebido que a maioria dos registros literários se dão no Centro, seja para louvá-lo ou detoná-lo. Isso é normal, ali é o ponto de origem da cidade. Mas queríamos autores que falassem de locais menos centrais, textos que não fossem só de poetas também – os versos são a grande parte das referências à cidade – e obras que fossem de autores contemporâneos”, explica a editora.

Para ela, o aplicativo tem um papel educativo – existe um quiz com perguntas que relacionam a cidade e a literatura, uma boa sugestão para professores usarem em salas de aula – e político. “Tentamos trazer um Recife profundo, não óbvio. Normalmente, a nossa relação com a cidade é contraditória, tem horas que você ama, tem horas que você odeia. E a arte e a literatura proporcionam outros olhares sobre ela, como o de escritores desconfiados do progresso a qualquer custo, como Joaquim Cardozo em Recife Morto e João Cabral em Ao Novo Recife”, continua Olívia.

O próprio trabalho de concepção, pesquisa e edição terminou mudando a relação deles com pontos da cidade. “Passei a ter outras percepções, um olhar mais lúdico e afetuoso – os espaços ganham outra dimensão quando você conhece mais a história deles”, pondera Eric. Parece um processo inevitável: as leituras ajudam a reimaginar a cidade, despida do olhar cotidiano e já acostumado. “Acho que me reapaixonei pelo Recife com o aplicativo”, resume Olívia. Fica o convite para mergulhar poeticamente nos problemas, na beleza e na vida sempre mutante das ruas recifenses.

Confira o que poetas e escritores falaram das ruas do Recife:

- Praia de Boa Viagem
Este elemento-símbolo da paisagem litorânea do Recife também aparece no livro A Cartografia da Noite, à maneira da poetisa Micheliny Verunschk, nascida em Arcoverde, no Sertão de Pernambuco – longe do mar, nunca do horizonte. E aqui vão versos do seu poema Arrecife:
 “Desse ponto
partem distância imaginárias
que contam
das reais distâncias entre nós.
(...)
Uma estátua
observa
a constelação das águas.
Sua roupa cinza
se agita
e veste por um instante
a pele nua do rio.
O homem se agita
e com ele
a cidade costurada
em nossas carnes. (...)”
 
- Beco da Facada
Em Casa Amarela, existe, numa das entradas da Estrada do Arraial, o famoso Beco da Facada (Rua Guimarães Peixoto), sobre o qual escreveu o poeta João Cabral de Melo Neto em poema de mesmo nome:
“1.
No escuro Beco da Facada
(porque tal nome, se ignorava,
mas porque tão pernambucano
era sem porquês, sem quandos)
nunca viu-se alma do outro mundo:
mas o medo armado no punho,
(...)
Mas faca só tinha no nome:
nunca se vira sangue de homem (...)”
 
- Avenida Guararapes
 O poeta Carlos Pena Filho, cuja imagem pode ser encontrada em escultura, na Praça da Independência, bem perto daí, imortalizou esta avenida que é um dos símbolos do processo de modernização no Recife, além de conhecido ponto de encontro de intelectuais e boêmios no século 20. Aqui vão, então, os versos de Chope, que pertence ao conjunto de poemas Guia Prático da Cidade do Recife:
“Na Avenida Guararapes,
o Recife vai marchando.
O bairro de Santo Antônio
tanto se foi transformando
que, agora, às cinco da tarde
mais se assemelha a um festim;
nas mesas do Bar Savoy,
o refrão tem sido assim:
São trinta copos de chope,
são trinta homens sentados,
trezentos desejos presos,
trinta mil sonhos frustrados. (...)”
 
- Rua da Concórdia
Conhecida atualmente como a rua dos eletrodomésticos e eletrônicos, a Rua da Concórdia é uma das vias mais famosas do bairro de São José, sobretudo no Sábado de Zé Pereira, dia do Galo da Madrugada, que abre o Carnaval da cidade. O escritor Cícero Belmar fala sobre isso no conto Nunca na Primeira Pessoa, na voz de seu personagem:
“(...) O Recife sem o Galo é uma coisa inimaginável. O Recife não tem solução sem o galo. É uma coisa bonita, é muito bonita, só sabe quem enfrenta as três horas desfile debaixo do sol escaldante, temperatura média de 40 graus centígrados. Quando eu falo, as pessoas me olham com estranhamento, só porque eu digo que é uma coisa linda o Galo da Madrugada. As pessoas que conheço são de classe média e não suportam ir ao desfile. Dizem que é coisa do povão. Eu vou, do começo ao fim, entro na Rua da Concórdia levando dedada. Poucas pessoas sabem o que eu estou dizendo. (...)”

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