CRÍTICA

Toni Morrison fala retornar para canto nenhum em Voltar para Casa

A autora americana foi a primeira escritora negra a receber o Nobel da Literatura, em 1993

Diogo Guedes
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Publicado em 31/10/2016 às 5:12
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A autora americana foi a primeira escritora negra a receber o Nobel da Literatura, em 1993 - FOTO: Divulgação
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Não há retorno se não existe um ponto de partida, se você não reconhece nenhum local como seu lar. É sintomático que o belo Voltar para Casa (Companhia das Letras, leia um trecho), da escritora americana e vencedora do Nobel de Literatura Toni Morrison, fale de uma “volta” no título. Seus personagens, na verdade, foram rejeitados pelo mundo injusto em que vivem: não se trata tanto de retornar, mas sim de criar uma casa – ou sensação de uma casa – em algum arredor hostil.

“Em Lotus você sabia antes, já que não tinha futuro, só longos momentos de matar o tempo. Não tinha outro objetivo além de respirar, nada pra conquistar e, a não ser pela morte tranquila de alguém, nada pra sobreviver ou por que valesse a pena sobreviver”, diz o personagem central do livro, Frank Money, um soldado negro que voltou da Guerra da Coreia com profundos traumas psicológicos. Servir ao exército foi para ele uma forma de sair do tédio sufocante da sua cidade natal – havia mais vida na guerra do que lá. Agora, depois de um relacionamento fracassado com Lily – ele é um caco de homem, alguém que alterna períodos de bebedeira e surtos com momentos em que simplesmente fica “sentado no sofá, olhando para o tapete” –, o soldado vai atrás da irmã, Ycidra, que ele costumava proteger e que ficou nos Estados Unidos lidando com o peso do passado.

O racismo e o machismo dos anos 1950 ganham um retrato profundo na trama. Morrison, autora de livros como Amada (1987) e O Olho Mais Azul (1970), com justiça, é reconhecida não só pela sua prosa brilhante, mas por abordar de forma crítica a realidade. Frank é um ser humano cheio de falhas, alvo de compaixão e de julgamentos, que pede ao narrador do livro para não ser pintado como “algum herói entusiasmado”. “Eu tinha que ir, mas estava apavorado”, diz, em um dos momentos que relata sua experiência na Coreia. Ao mesmo tempo, a trama que poderia ser excessivamente masculina se dedica também a falar do ponto de vista de sua irmã, Ycidra (“uma presença marcando a própria ausência”), e de sua ex-mulher, Lily.

Todos os personagens foram quebrados por uma criação dura, pela falta de perspectiva, por uma sociedade que não vai esperar que eles comentam erros para puni-los. Quando Ycidra nasceu, sua mãe “esperou nove dias antes de botar o nome, pra a morte não farejar vida nova e comer”. Frank sabe, mais do que todos, que “não precisava estar na rua para alegarem perturbação legal ou ilegal. Você podia estar dentro de casa, morando na sua casa há anos e mesmo assim homens com ou sem distintivos, mas sempre com armas, podiam forçar você, sua família, seus vizinhos a fazer as malas e mudar – com ou sem sapatos”.

Em outro momento, ele escuta um desconhecido dizer, numa sádica disputa de quem sofreu mais ao longo da vida, quase em tom de brincadeira: “Eu dormi tanto no chão que a primeira vez que vi uma cama achei que era um caixão de defunto”. Lily, sua ex-esposa, fala do período em que tiveram casados: os traumas e o comodismo de Frank o faziam alguém imóvel, incapaz de ajudar na casa, de projetar um futuro, de sair do assombro das próprias memórias. Ela, que carrega o fardo da presença ausente dele, se vê, quando ele vai embora, não acometida de uma solidão, mas de um “estremecimento de liberdade, de solidão conquistada, de escolha da muralha que queria atravessar”.

RACISMO

Em algum momento, o viés político de denúncia de Morrison poderia facilmente cair no didatismo. A violência policial, a segregação, a sociedade patriarcal poderiam, com um lirismo exacerbado ou uma função apenas discursiva, ser elementos repetitivos, clichês. Não é o caso aqui. Voltar para Casa tem profundidade na sua construção de personagens complexos – eles não servem a ideias prévias, mas vivem, com contradições, em um mundo em que não é difícil se deparar (como não é hoje) com exemplos de preconceitos raciais e de gênero.

De certa forma, seria injusto descrever o romance apenas através das questões que levanta – se assim fosse, ele seria mais um ensaio narrativo do que uma prosa literária, o que não acontece. Toni Morrison apresenta com maestria a sensação cruel que é perceber que não existe um lugar na vida pronto para você, que até a mínima lucidez e conforto terão que ser conquistados a duras penas. Voltar para Casa é, antes de tudo, uma grande história. E a escritora parece passar pelo desafio enunciado por Frank, que diz para a pessoa que narra sua vida: “Descreva isso aí se souber”. Sim, Morrison sabe.

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