CLÁSSICO

Os Sertões, o livro que foi um mea culpa literário

O livro de Euclides da Cunha ganha uma edição crítica pela Ubu e Sesc para celebrar os 150 anos do nascimento do autor

Diogo Guedes
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Diogo Guedes
Publicado em 27/11/2016 às 5:38
Flávio de Barros/Sesc/Ubu
O livro de Euclides da Cunha ganha uma edição crítica pela Ubu e Sesc para celebrar os 150 anos do nascimento do autor - FOTO: Flávio de Barros/Sesc/Ubu
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Quando partiu para acompanhar o conflito de Canudos como jornalista contratado, Euclides da Cunha já havia escrito dois artigos duros contra o fanatismo religioso de Antonio Conselheiro e de seus seguidores. Era apenas mais uma voz em meio à quase unanimidade da imprensa e da opinião pública, que pintavam Canudos como parte de uma conspiração monarquista internacional que precisava ser contida pelo Estado brasileiro. O arraial já havia resistido a várias pequenas expedições militares. Na última, consideravelmente maior, sob comando do coronel Moreira César, o Corta-Pescoço, que já havia reprimido a Revolução Federalista do Rio Grande do Sul, o Exército foi fragorosamente derrotado: bateu em retirada no primeiro ataque, com uma debandada geral que deixou peças de roupa, armas e munições para trás.

Euclides estava em Canudos quando começou a se preparar a expedição final, com cinco generais, o Ministro da Guerra e tropas de todo o País. Ali, diante dos olhos deles, Canudos e quase todos seus habitantes foram simplesmente liquidados – todos os prisioneiros da guerra foram degolados na frente das altas patentes, o arraial foi queimado e explodido. A batalha, antes necessária, agora mostrava a sua verdadeira face, a de um massacre criminoso. A crítica literária e professora da USP Walnice Nogueira Galvão, organizadora da nova edição crítica do livro Os Sertões, editada pela Ubu e pelo Sesc, define com precisão porque a prosa de Euclides tem impacto tão forte 150 anos depois do nascimento do autor: é o maior mea culpa da literatura brasileira.

O livro não foi só fruto de uma autocrítica pessoal: ali, o Brasil começou a entender a gravidade do que ocorrera em Canudos, longe do fantasma das conspirações monarquistas. Euclides relatou isso em reportagens e, cinco anos depois, concluiu o livro sobre esse crime que se sentira na obrigação de denunciar. “Pode-se imaginar o quanto de lenha na fogueira o livro lançou. Escreveu-se muito, falou-se muito sobre ele. Mas o livro trazia algo fundamental para a psique do País naquele momento – o caráter da culpa. Os Sertões nasce do desejo de uma voz que dissesse: ‘Somos todos culpados por aquilo’”, explica Walnice.

Se foi fundamental para o instante, a reportagem de Euclides ganhou com o tempo o merecido status de clássico. A bela edição da Ubu – formada por Florencia Ferrari e Elaine Ramos, nomes fundamentais da extinta Cosac Naify – conta com um rico caderno de fotografias e anotações do autor, organização de Walnice e uma fortuna crítica que só ressalta a dimensão da obra, trazendo textos de Gilberto Freyre, Antônio Houaiss, Antonio Candido e Luiz Costa Lima, entre outros. “É uma obra consagrada, embora eu acredite que seja muito pouco lida. E não porque é um livro árido, mas porque é quase barroco, é um neobarroco que dificulta a leitura. Ficou um ícone que não sei se é tão lido quanto é admirado”, comenta a crítica literária.

ÉPICO TRÁGICO

Euclides fez da narrativa da Guerra de Canudos um épico que se converte em tragédia, apenas uma das contradições da obra. Dividiu o volume em três partes – A Terra, O Homem, da famosa frase “O sertanejo é, antes de tudo, um forte”, e A Luta – e usou sua formação militar, a influência do positivismo e seu apreço pela retórica para erguer a obra. As duas primeiras partes, bastante descritivas, mostram a proeza de linguagem dele. “Ele consegue o milagre de fazer uma descrição parecer algo narrativo. Há um efeito de discurso em Euclides – e isso é algo datado também –, e ele é um mestre no manejo da retórica. Ao longo de todo o livro, ele escreve como se fosse um tribuno da plebe defendendo a causa do sertanejo. O que se passou é uma tragédia, e ele assume a voz disso com todos os recursos possíveis”, aponta Walnice.

Na edição crítica, a professora também destaca que “a verdade do livro está em suas contradições”. “Euclides explora de alto a baixo todas as figuras de linguagem, desde o oxímoro, a mais curta de todas as aproximações de extremos, até a comparação e a oposição. Ele é um operador da língua e cria um texto que tem muito a ver com a própria consciência dele sobre o episódio”, analisa a crítica literária. Afinal, para ela, é a impossibilidade de síntese que melhor revela Canudos. 

O massacre de Antônio Conselheiro e dos seus seguidores era, sem dúvida, uma grande história que precisava ser narrada. Euclides era um prosador mais do que capaz. No entanto, é a junção do mea culpa pessoal com o mea culpa coletivo que fez e faz da obra um livro essencial. Walnice lembra, por exemplo, que o escritor peruano Mario Vargas Llosa, Nobel da Literatura, escreveu sobre Canudos. Seu livro não tem o mesmo impacto. “Lá está tudo resolvido, não estão as angústias. Só Euclides nos mostra todo o dilaceramento da sua e da nossa consciência”, define.

IMAGINÁRIO SERTANEJO

O retrato – exagerado, impressionado e determinista – do sertanejo e do Sertão feito por Euclides da Cunha é parte fundante do imaginário da região. O sertanejo não é só o homem forte; é uma pessoa de “extremos impulsos e apatias longas”, que engana o forasteiro em um primeiro olhar. “O gaúcho, o peleador valente, é certo, inimitável numa carga guerreira (...) O jagunço é menos teatralmente heroico; é mais tenaz; é mais resistente; é mais perigoso; é mais forte; é mais duro”, vaticina Euclides.

Na sua “curiosa posição de militar que se apaixona pelo inimigo e não pelo aliado”, como define a crítica Walnice Nogueira Galvão, o autor de Os Sertões criou uma obra singular diante do contexto literário da sua época. O neobarroco de Euclides é contemporâneo da fase madura de Machado de Assis e de Lima Barreto, mas existe um fosso entre a prosa de todos eles. Com a Semana de 1922, anos mais tarde, ele destoaria ainda mais.

“O modernismo tinha uma ojeriza a Euclides da Cunha. Ele era tudo o que eles negavam. Pregavam uma prosa coloquial, etc. Euclides é um monumento, um neobarroco, com uma eloquência que eles detestavam”, ressalta Walnice. “Era o caso de se pensar se Euclides e Os Sertões sobreviveriam ao modernismo, na verdade, se ainda seriam tão aclamados”.

Os dois não só resistiram como foram, mais tarde, essenciais para o caminho da literatura moderna brasileira. “O Romance de 1930, regionalista, vem de Euclides, passando por cima do modernismo. A sua obra é a inspiração para Graciliano, Rachel de Queiroz e outros”, aponta a crítica literária. A seca, por exemplo, é um personagem da geografia e da personalidade dos homens da terra. “A seca não o apavora. É um complemento à sua vida tormentosa, emoldurando-a em cenários tremendos”, descreve Euclides. Outra contribuição do autor é no nascimento das ciências sociais no Brasil, nos anos 1940, que usaria muito do mapeamento feito por ele e passaria a privilegiar temas como as rebeliões populares, a desigualdade, os retirantes, a seca.

Por fim, vale lembrar que Euclides publicou outros três livros – Contrastes e Confrontos, Peru Versus Bolívia e À Margem da História. Nenhum deles, no entanto, tem força parecida a de Os Sertões, e muito menos impacto na literatura e na cultura brasileira. “Não sabemos se ele faria algo do mesmo nível, ele morreu muito cedo, mal tinha feito 40 anos. Sabemos que ele queria escrever um livro sobre a Amazônia, O Paraíso Perdido. Sobre lá, ele escreveu várias coisas brilhantes, textos avulsos. Se tivesse vivido mais, levado a cabo a intenção, o que já seria difícil, podia ser que tivesse realizado outra obra do mesmo porte”, pondera Walnice.

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