Em cada minúcia existe um sacramento, já lembrou o poeta cubano José Lezama Lima. A imagem criada por ele foi recuperada pela escritora e artista plástica na epígrafe do seu novo livro, Fia (Demônio Negro). Não é uma citação gratuita: os poemas da obra observam – e recriam – o que há de sagrado e poético no cotidiano de gestos, preces e imaginário das rendeiras renascença de Gravatá de Gomes, no Agreste de Pernambuco.
Autora de títulos como Carpideiras, Natália e Baobá, Poemas de Leticia Volpi, Jussara faz nesta quarta (21/12) o primeiro lançamento da obra, a partir das 19h, no Espaço Pasárgada. Para compor o volume, que teve apoio do Funcultura, a poeta fez uma longa pesquisa, que envolveu inúmeras visitas ao povoado, conversas, fotografias, gravações e até mesmo o aprendizado do ponto.
O projeto nasceu em 2013, quando ela foi visitar a Feira de Pesqueira, um dos locais das rendas famosas no Brasil todo. Depois, no caminho para Poção, encontrou algumas casas com pessoas tecendo do lado de fora. Eram as mulheres do povoado de Gravatá de Gomes, parte de Poção, que produziam à margem do comércio mais estabelecido. Ao conversar com ela, a autora criou a proposta de pesquisar o ofício ali para compor o seu próximo livro de poemas.
Jussara já havia visto e lido obras sobre as rendas renascença, mas buscava algo mais do que falar sobre os belos tecidos: sua ideia era retratar as pessoas que tecem pontos tão sofisticados nas suas simples casas de chão batido (ainda que tenham grandes TVs). “Muitas diziam que não queriam fazer mais renda, que pessoas de fora vinham, compravam e ficava muito pouco para elas. Toda vez que eu voltada via algo novo sobre esse trabalho que está morrendo – algumas rendeiras sequer querem ensinar aos seus filhos, porque não acham um bom futuro”, conta Jussara.
Outro ponto de interesse era o mistério da existência da tradição rendeira da renascença em Pernambuco. “Nenhum outro canto do Brasil tem isso. Essa renda nasceu na França no século 16, criada para reis e rainha. Uma mulher, Maria Pastora, aprendeu no convento de Olinda e foi para o interior ensinar. O conhecimento deve ter chegado a muitos locais, mas por que justamente ali, num lugar tão pobre e tão seco, isso virou um saber e um fazer?”, aponta.
A beleza de Fia está na evocação dessas pessoas e minúcias (os fios de algodão que “costuram/ a terra ao sol”, por exemplo) através das rezas, da sabedoria sobre os pontos e do imaginário da seca, da pobreza e do tecer. Na convivência com Cláudia, Ana, Irene, Terezinha, Luciana, Nalva, Edmara, Rosário, Madalena e outras, ela viu um povoado que se sustenta a partir do trabalho das mulheres – os maridos muitas vezes passam o dia no bar ou no máximo ajudam na parte da venda – unidas numa quase cooperativa. “Elas se juntam para comprar as meadas, pegam empréstimos. Se alguém pergunta sobre um vestido, uma delas diz: ‘Ah, fulana faz melhor do que eu, é melhor você ir lá’”, diz a autora.
RELIGIOSIDADE
As próprias rendeiras não usam as roupas que fazem, preferem tecidos comuns porque não incomodam. Ao mesmo tempo, a religiosidade é presente o tempo todo no ofício: de uma das mulheres, Jussara ouviu a frase “dai-nos o ponto nosso de cada dia”, que incorporou ao livro. “Algumas acreditam que o ponto vem de Deus mesmo”, observa.
De alguma forma, a temática é um contínuo de um livro anterior dela, Carpideiras, que também bebeu da pesquisa em uma tradição popular – com um fundo religioso – para compor sua poética. Ao mesmo tempo, ao longo de Fia, não é a imagem da beleza dos tecidos que se faz presente: os versos revelam o deslumbre e a tristeza dessas mulheres e desse ofício. “Se só falasse na renda, eu estaria estetizando o que já existe como objeto estético. Preferi buscar um viés poético que pudesse pensar numa crítica da dimensão humana das rendeiras”, comenta a autora.
Fia é dividido em duas partes: numa, estão as cantigas de passagem, que trazem o caminho do viajante que vai até essas rendas, “na estrada seca, com aves de agouro, animais mortos”. “A outra, De Riscos e Mapas, fala sobre esses mapas-moldes que o fiar vai criando na sua forma repetitiva, quase como um mantra. É como rezar mesmo”, pondera Jussara.
“Além disso, o ponto e o fio me interessam muito na poesia como estruturas básicas rítmicas. Eu tinha muito material para esse livro. Sou muito prolixa, mas queria um livro conciso, mais denso, concentrado. Passaria anos escrevendo, mas acho que Fia foi criado por essa justaposição de memórias, anotações e impressões”, finaliza a poeta.
l Lançamento de Fia, de Jussara Salazar – hoje, às 19h, no Espaço Pasárgada (R. da União, 263, Boa Vista).