ENTREVISTA

Micheliny Verunschk fala sobre 'O Peso do Coração de um Homem'

O novo romance continua a trilogia iniciada com 'Aqui, no Coração do Inferno'

JC Online
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Publicado em 17/07/2017 às 8:15
Ivson Miranda/Divulgação
O novo romance continua a trilogia iniciada com 'Aqui, no Coração do Inferno' - FOTO: Ivson Miranda/Divulgação
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É de uma “terra sem país” que fala o novo romance da escritora pernambucana radicada em São Paulo Micheliny Verunschk, O Peso do Coração de um Homem (Patuá). Na trama sobre a busca de um garoto por vingança, a autora fala – e agora mais do que nunca – sobre esse “país dos desvalidos, dos desaparecidos políticos, da gente que só aparece no jornal na página policial”. Nessa entrevista a Diogo Guedes, ela fala sobre retomar sua narrativa anterior, seus próximos livros e a tentativa de iluminar um objeto por todos os lados, como sugere João Cabral.

JORNAL DO COMMERCIO – Sob certa ótica, O Peso do Coração de um Homem é tanto sobre a vingança como sobre como ela se apodera das pessoas. Como foi o processo de criar essa narrativa, cheias de injustiças e violências, mas sem idealizações?
MICHELINY VERUNSCHK – Em algum momento Cristóvão, protagonista de O Peso do Coração de um Homem, fala que vive numa terra sem país. É numa terra sem país que vivem milhões de brasileiros, ainda mais agora em que direitos são retirados e escravocratas das mais variadas procedências, sem o menor pejo, dão as caras na mídia com suas propostas esdrúxulas. Para escrever sobre um lugar assim é preciso atentar para a advertência que há na entrada do inferno de Dante: “Deixai toda esperança ó vós que entrais”. Não que a esperança não possa existir, claro que pode, embora demore a vicejar, mas que não é possível escrever sobre isso a partir de idealizações.

JC – O Peso do Coração de um Homem, como teu romance anterior, é narrado por uma voz não formada ainda, de criança/adolescente. Tinha interesse em recriar essas vozes? Sentiu dificuldades no processo?
MICHELINY – Para mim personagens na infância/adolescência são as mais instigantes, têm aquele olhar inaugural sobre o mundo. No caso de Laura, personagem de Aqui, no Coração do Inferno, a dificuldade foi a de construir uma menina dos anos 1980, com todo o tom politicamente incorreto dos anos 1980, mas que ao mesmo tempo não parecesse caricatural. Tenho a impressão de ter conseguido isso. No caso de Cristóvão, protagonista de O Peso do Coração de um Homem, a dificuldade foi de outra natureza, a de criar uma voz que falasse do passado, que pudesse até ser adulta, mas que não perdesse o frescor, o espanto.

JC – Nessas duas tramas, no fundo de uma tragédia pessoal está também um contexto cruel do Brasil. Queria misturar os dramas dos personagens com os dramas do país?
MICHELINY – Sim. Essas personagens transitam num tempo e num espaço histórico-social. Elas falam delas mesmas e desse cenário, desse lugar no qual foram colocadas. Para mim é de extrema importância contar sobre esse país, o país dos desvalidos, dos desaparecidos políticos, da gente que só aparece no jornal na página policial.

JC – O romance continua a narrativa anterior. Pensou nele também como uma história autônoma? Como foi tecer a autonomia e continuidade?
MICHELINY – Sim, a minha pretensão é que cada um dos três livros possa ser lido autonomamente. Toda história, até a fofoca do vizinho, tem mais de uma versão. Não existe história única. Pensando nisso apresento relatos e perspectivas diferentes para essa narrativa. Gosto de pensar no conselho de João Cabral a respeito de poesia: iluminar o objeto por todos os lados. Nesse caso, peguei um triângulo e lancei luzes. É nisso que gosto de pensar.

JC – O livro traz uma infância e adolescência sem idealizações, cheia de violência e sexo. São aspectos idealizados no nosso imaginário?
MICHELINY – São, sim. Num mundo ideal, crianças não seriam expostas ao pior da humanidade, mas eis que as temos aí, ficando tetraplégicas ainda na barriga das mães, vítimas de balas perdidas, sendo obrigadas a sobreviver a vários tipos de abusos e perversões. Construímos ideais de crianças imaculadas, mas efetivamente fazemos bem pouco, como sociedade, para protegê-las.

JC – A história desses personagens vai continuar? Se sim, como está a criação desse novo romance?
MICHELINY – Sim, continua. O terceiro livro, que deve se chamar O Amor, Esse Obstáculo, conta uma outra parte dessa história, costurando fatos e motivações das duas primeiras, fechando questões em aberto e deixando outras em seu lugar, além de apresentar um novo narrador. Estou na terceira versão para esse último livro, que acredito ser, agora, a versão definitiva. Se tudo der certo, sai em meados do ano que vem.

JC – Você tem pronto um livro inédito de poesia. Pode falar um pouco dele? Como tem sido escrever poesia e prosa em paralelo, há demandas diferentes dos assuntos e dos momentos?
MICHELINY – Na verdade, tenho dois livros inéditos de poesia, que devem sair esse ano ainda, e muitos poemas esparsos. Os livros devem sair numa publicação casada, numa caixa, acho, e se chamam Outra Arte e Maravilhas Banais. Estou um pouco ansiosa por essa publicação, porque faz um tempo que não publico poesia em livro (não estou falando de plaquetes). Não há dificuldade para mim de transitar entre a prosa e a poesia, faço um e outro simultaneamente, e os assuntos e momentos ora se tocam, ora não. Em uma hora estou ligada no 110. Em outra hora, no 220.

O LIVRO

Em alguns casos, uma expressão pode tirar força de cada um dos sentidos possíveis que pode assumir, dos mais metafóricos ao mais literais. Ao falar de O Peso do Coração de um Homem (Patuá), novo livro de Micheliny Verunschk, é bom entender que existe o órgão físico e o imaginário que o cerca; que o peso pode ser tanto o fardo abrangente como as gramas de um objeto.

A obra da autora pernambucana continua (e, com boas surpresas até o fim) o seu romance anterior, Aqui, no Coração do Inferno, sem se tornar dependente dele. A narrativa traz um garoto sem nome que, junto com seu irmão, vê seus pais serem assassinados por um bando que quer tomar a terra que a família ocupa. Viviam tão isolados, numa precariedade tão grande, que os dois meninos sequer sabiam os próprios nomes. Órfãos, são levados para a casa de uma mulher, que decide criá-los.

O narrador do livro ganha o nome de Cristóvão. Mesmo criança, não deixa de lado em nenhum momento a ideia fixa de se vingar do grupo que matou os seus pais na sua frente. De certa forma, o livro é a história de uma vingança que, mesmo justa, contamina o íntimo de uma pessoa até transformá-la em vetor da violência.

Micheliny adentra esse personagem que vai deixando de lado a ingenuidade da infância e segue a obsessão de acertar contas com o passado. Essa tensão vai se desdobrando em momentos bem construídos, mas é especialmente o próprio Cristóvão que se mostra complexo. Sua voz é infantil e madura, cega de vingança e ponderada – tateia sempre quem o garoto vai se tornando.

Em dado momento, o narrador Cristóvão diz: “O peso do coração de um homem não é diferente do peso do coração de qualquer animal (...) Mas seria de igual formato o coração de uma mulher? (...) O coração de um homem, raízes em labirinto. O delas (mulheres), não, o delas facas com direção certa e fio e desenho muito bem compreensível”. O romance de Micheliny tem esse fio amolado, sem hesitação, que é capaz de traçar um labirinto só para rasgar suas paredes e criar os próprios atalhos.

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