Ao entrar no prédio onde mora o escritor Raimundo Carrero, no bairro da Tamarineira, o sentimento de acolhida se assemelha ao da chegada em uma pequena cidade do interior. Logo no hall, o visitante encontra um espaço caracterizado com bancos, plantas e ornado com uma placa azul e branca onde se lê Praça Raimundo Carrero. “Devo ser um bom vizinho”, brinca o homenageado, que mora no terceiro andar.
Ao sair do elevador, não é difícil adivinhar qual seu apartamento: basta seguir o corredor de plantas e o som da televisão ligada. Pela hora – já passava um pouco das 11h – o programa assistido por Carrero devia ser algum sobre futebol, esporte preferido e praticado pelo escritor na época em que era interno no colégio Salesiano na década de 1960.
Passados 50 anos de sua pré-adolescência, Raimundo Carrero se prepara para completar no próximo mês sete décadas bem vividas e muito bem contadas. Anedotas e personagens não faltam nas conversas de Raimundo, e Salgueiro, sua cidade natal, está sempre presente. O município prepara inclusive uma festa no início de dezembro para celebrar o aniversário de um de seus filhos mais ilustres. “Estou muito feliz e orgulhoso com essa lembrança, afinal Salgueiro é o fundamento da minha vida. Foi ali que vi e conversei com meus primeiros personagens, minhas primeiras sombras, alegrias e amores”, lembra.
Criado em uma família numerosa, Carrero conta que seu gosto pela leitura foi influência direta de seus nove irmãos mais velhos – ele é o décimo dos onze filhos. “Quatro das minhas irmãs mais velhas foram professoras, então sempre tinha livro em tudo que era canto da nossa casa. E um dos meus irmãos, Francisco, deixou de 100 a 200 livros debaixo do balcão da loja de tecidos e chapéus do nosso pai quando fugiu com o circo”, conta. De fato não faltam histórias na vida de Carrero.
A infância e adolescência passadas em Salgueiro formaram não apenas parte de sua personalidade, mas também muito de seu material literário. O Sertão, suas paisagens e seus personagens foram e continuam sendo emissários de sentimentos e situações em seus romances que ultrapassam as margens do Pajeú. A universalidade da obra carreriana é ressaltada pelo seu biógrafo, Marcelo Pereira, na introdução do livro O Delicado Abismo da Loucura (Iluminuras), em que estão reunidas A História de Bernarda Soledade – A Tigre do Sertão, As Sementes do Sol e A Dupla Face do Baralho, três obras “da fase sertaneja da obra de Carrero.”
O primeiro desses três livros foi escrito em 1973 e publicado dois anos depois. “Ainda hoje é meu livro preferido e cuja força vem justamente dessas noites sertanejas, que são quentes e misteriosas”, explica Carrero. Uma adaptação desta novela para o formato cênico está inclusive sendo preparada pela atriz Fabiana Pirro, amiga de Carrero, para as comemorações em Salgueiro.
História de Bernarda Soledade – A Tigre do Sertão, cujo enredo perpassa uma briga familiar e a saga de uma personagem corajosa e decidida, foi descrita por Ariano Suassuna como o segundo romance do movimento Armorial e cuja escrita ressalta “as ligações com o espírito áspero e mágico do Romanceiro Popular do Nordeste”.
Uma pátria traduzida em palavras
A sensação acolhedora do mundo particular que Raimundo Carrero vem criando há 17 anos em seu colorido apartamento continua nos detalhes decorativos que evidenciam os anos dedicados à atividade literária. Entre as máquinas de escrever e os quadros que ganhou de presente de alguns de seus numerosos alunos da Oficina de Criação Literária, alguns livros – entre eles A Pedra do Reino, de Ariano – estão espalhados pela sala de estar.
Mas é ao entrar na biblioteca do escritor que é possível perceber o quão orgulhoso Carrero é de sua trajetória. Traduzida nos mais diversos países, a obra do pernambucano também já foi objeto de pesquisas acadêmicas - “uma das minhas vaidades”, diz ao mostrar as teses.
Entre as prateleiras de centenas de livros, o sagrado também tem seu espaço. Ao lado da Nossa Senhora se encontram outras imagens religiosas, fato que faz a conversa voltar a Salgueiro, já que antigamente a cidade se chamava Santo Antônio do Salgueiro, levando o nome do padroeiro de Raimundo. “A cidade, geograficamente e fisicamente, não aparece na minha obra. Mas é importante dizer que o clima, a expectativa e a forma de viver estão em meus romances”, avalia.
A preocupação em não ser rotulado como escritor regionalista sempre se faz presente quando Carrero fala sobre representar o Sertão em suas histórias. “O que distingue o Regional do Armorial, é que o Regional é documental, e o Armorial não”, explica. “Como o argumento central do pensamento Regional é a sociologia e a antropologia, é natural que as pessoas e a fisionomia da cidade apareçam de forma documentadas”, esclarece, pontuando ainda o erro comum de associar Graciliano Ramos aos regionalistas.
As idas à cidade natal não estão mais sendo realizadas com muita frequência, mas Salgueiro não sai da cabeça de seu filho querido, que ainda denomina o lugar onde cresceu de “casa”, mesmo não morando lá há mais de 50 anos. O retorno que acontecem em menos de um mês e as celebrações que o aguardam devem ser apenas o início da comemoração de seus 70 anos.
Mesmo não tendo preparado nenhum lançamento para encerrar 2017, um novo projeto já está sendo carinhosamente articulado por Carrero e deve vir a público ainda no primeiro trimestre do próximo ano. “Depois que tive o AVC escrevi Tangolomango e O Senhor Agora Vai Mudar de Corpo, mas não consegui dar a este romance o ritmo que geralmente tenho.” Assim como muitos de seus livros, este que está sendo gerado é pautado por um caráter autobiográfico.
“Ele se chama, ou vai se chamar, Delírios de Amor e Loucura e é uma revisão da minha obra a partir da infância até a velhice.” A ousadia, astúcia e grandeza literária certamente está, desde já, sendo aguardada por seus leitores.
Leia trecho de 'A História de Bernarda Soledade':
"O ódio tomou conta de Bernarda Soledade. Ela, no entanto, sorriu. Sacudiu levemante as rédeas de Estrela, voltou para o alpendre da casa-grande como se retornasse de um longo passeio. Parou a fim de admirar a valentia de Anrique, que sustentava as crinas negras e revoltas do animal, equilibrando-se com um braço solto. Também o coronel Pedro Soledade, de pé no alpendre da casa, apoiando-se na bengala, contemplava a luta.
Era o fim da tarde. Morrendo o sol, as sombras começaram a crescer no pátio de Puchinãnã. Anrique ficou encarnado, O cavalo, quase um demônio, pouco a pouco perdia as forças, a coragem. Dos seus olhos, porém, não fugia a fúria. Enfim, domado. Todos se retiraram. (...)
Bernarda Soledade saiu do banheiro com os longos cabelos negros soltos, pingando água, perfume de mato molhado percorria-lhe o corpo."