José Eugênio Soares é uma das figuras mais conhecidas do Brasil. No teatro, no cinema, literatura e, principalmente, na televisão, foi ator e testemunha de fatos marcantes da cultura nacional. A simples menção do seu nome artístico, Jô, evoca memórias que atravessam gerações, seja por humorísticos como Viva o Gordo ou pelas entrevistas que conduziu em programas como Jô Soares Onze e Meia e Programa do Jô. O multiartista, que completa 80 anos nesta terça-feira (16), tem sua trajetória revisitada em O Livro de Jô – Uma Autobiografia Desautorizada (Companhia das Letras, R$ 64,90), primeiro volume de suas memórias escritas em parceria com o jornalista Matinas Suzuki Jr.
Pode surpreender a alguns o fato do calhamaço de 528 páginas cobrir apenas as três primeiras décadas de vida de Jô. Porém, basta folhear as primeiras páginas para ser capturado pela escrita fluida e coloquial do apresentador, que parece conduzir a obra como uma longa e prazerosa conversa. Apesar de seguir uma ordem cronológica, que tem os principais fatos da vida de Jô como foco, o livro é também um recorte da vida política e cultural do Brasil. Isso porque, nascido em uma família abastada e influente, o artista circulou por espaços privilegiados, tendo acesso a muitas histórias de bastidores.
Filho único, Jô nasceu quando sua mãe, Mercedes Leal, conhecida como Mêcha, tinha 40 anos. Era uma mulher à frente de seu tempo: foi a primeira mulher a tirar carteira de motorista no Rio de Janeiro, fumava muito em uma época em que isso não era considerado apropriado para “senhoras distintas” e tinha um humor aguçado, além de ser muito culta (falava sete línguas) Seu pai, o paraibano Orlando Soares, o Garoupa, era corretor da bolsa de valores e ostentava um alto padrão de vida para a família. A família vivia em um anexo do luxuoso Copacabana Palace e, por isso, Jô teve a oportunidade de conviver com diversos artistas e políticos, ensaiando, inclusive, seus primeiros “números” nas dependências do hotel.
Ainda que as passagens da vida do apresentador sejam o foco da narrativa, muitas vezes elas são utilizadas apenas como a introdução para a revelação de causos inusitados envolvendo figuras que circulavam principalmente no Rio de Janeiro, então capital federal. O leitor tem acesso a intrigas políticas e pessoais, resultado também de um interesse memorialístico e investigativo de Jô, leitor voraz que, como afirma no livro, não se fia só na memória e pesquisa intensamente sobre os assuntos e pessoas sobre os quais escreve (e, aqui, fica evidente também o trabalho de apuração de Matinas Suzuki Jr).
VIRANDO JÔ
Chamado pelos pais de Zezinho, José Eugênio desfrutou de tudo que o dinheiro e pais interessados em cultura poderiam oferecer. Viajou aos Estados Unidos, Canadá e, durante temporada na Europa, acabou ficando na Suíça, para estudar.
Apesar do bom humor e do fascínio pelo mundo artístico, o garoto queria ser diplomata. No exterior, passou a ser chamado pelos colegas de Joe (diminutivo de Joseph, José em inglês). Quando voltou ao Brasil, tentou usar o novo apelido, mas a barreira linguística fez com que sua primeira esposa, Therezinha Austregésilo, sugerisse que assinasse como Jô. Pegou.
Aos 18 anos, começa a trabalhar e faz de tudo um pouco: redação publicitária, roteiros para a televisão – então um meio que começava a se popularizar – e trabalhos no teatro. O Recife, inclusive, marca esse início da vida artística de Jô Soares. Em 1960, ele veio à cidade para integrar a banda de um grupo de teatro (à época, Jô tocava bongô) e aproveitou para apresentar o esquete O Abacaxi Que Invadiu Nova York, na Festa da Mocidade, que ocorria no Parque Treze de Maio. “Aquela apresentação foi um marco para mim”, pontua no livro.
O livro mostra os encontros de Jô com grandes nomes como Edith Piaf, Orson Welles, Cacilda Becker, entre outros. Revela também o caráter prolífico da obra do artista e suas colaborações com Oscarito, no filme O Homem do Sputinik (1959), Grande Othelo, em Vai Que É Mole (1960), e José Agripino de Paula, no alternativo Hitler do Terceiro Mundo (1968), só para citar alguns, acompanhando seu desenvolvimento artístico, a ascensão televisiva e também fatos tocantes de sua vida.
Entre as passagens mais comoventes está o nascimento do filho Rafael, que nasceu com hipospádia, um problema genético, e autismo. O autor, inclusive, fala sobre as críticas de que escondia o filho, como se tivesse vergonha de sua condição. “Não posso negar que a maneira como o Rafinha veio ao mundo mexeu muito comigo. Hoje consigo entender bem o que ocorre com os pais de filhos especiais”, revela. Rafael morreu aos 51 anos, vítima de câncer.
Outra passagem comovente é quando o humorista, durante uma corrida de táxi, descobre que o condutor tinha sido o responsável pelo atropelamento de sua mãe, anos antes, acidente que a matou, e consola e perdoa o homem, que afirmou nunca ter se recuperado emocionalmente do ocorrido. A perda da mãe, que era um grande referencial para o artista, o abalou profundamente. Apesar da densidade dessas memórias, Jô consegue conferir leveza e o tom que impera durante o livro nunca chega a ser de pesar.
A autobiografia conta ainda sobre o golpe que instalou a ditadura militar no País, em 1964, e suas repercussões na cultura. Durante esse período, Jô continuou atuando com humor ácido na televisão, ganhando mais repercussão e, assim, chamando atenção da censura, que chegou a convocá-lo para interrogatório no Departamento de Ordem Política e Social (Dops). O livro segue até 1968 e o segundo volume tem previsão de ser lançado ainda este ano. Para este ano, “o Gordo” tem ainda mais um plano: adaptar, dirigir e atuar em A Noite de 16 de Janeiro, da russa Ayn Rand, que chamou sua atenção justamente por referenciar a data de seu aniversário.
