Uma cura, um processo dialógico com a realidade, o contrário da solidão, o direito de ser quem é. Várias são as metáforas que a filósofa, professora da USP e colunista, Marcia Tiburi, utiliza no livro "Feminismo em comum" para tentar explicar esse movimento que, segundo ela, é uma ferramenta de transformação da sociedade. Lançada em Recife, na terça-feira (30), a obra consolida a "própria compreensão de feminismo" de Tiburi, trazendo reflexões pessoais e relatos familiares que contribuem para mostrar o caráter histórico e geracional do machismo.
Centenas de pessoas se reuniram na Livraria Cultura, no Paço Alfândega, às 18h, em uma noite que deu voz e vez às mulheres, que, entre muito humor e reflexões, fizeram jus ao título do livro. A obra soma-se a outros títulos já conhecidos da autora, como Ridículo Político (2017), Como conversar com um fascista (2015), Filosofia em comum (2008), entre outros. O JC entrevistou a filósofa sobre o novo lançamento que já está na segunda tiragem em algumas livrarias.
Entrevista na íntegra:
JORNAL DO COMMERCIO - Marcia, todas as questões que envolvem o feminismo e a posição da mulher na sociedade sempre foram pautadas nas suas reflexões, mas ainda não havia nenhuma obra consolidada nesse sentido. Como e quando surgiu a ideia de escrever “Feminismo em comum”?
MARCIA TIBURI - Eu escrevi textos pra revistas, pra jornais, pra blogs, escrevi artigos acadêmicos, mas até esse momento não tinha escrito um livro mais fundamentado no sentido da minha própria compreensão de feminismo. Eu demorei muito pra amadurecer a minha compreensão do feminismo. Acho que, num primeiro momento, nós todas, que somos pessoas marcadas como mulheres numa cultura patriarcal, nos sentimos feministas, mas não sabemos explicar exatamente porquê. E eu quis trabalhar com esse aspecto, falar do meu ponto de vista. Então, o meu amadurecimento em relação ao feminismo está exposto nesse livro. Achei que esse seria um bom momento pra colocar a minha perspectiva. O feminismo sempre implica a colocação em cena de uma perspectiva daquela que fala, quer dizer, está em jogo sempre um ato de fala e um lugar de fala. E, além disso, teve o convite da Rosa dos Tempos pra que eu publicasse esse livro inicial da editora. É um encontro entre a busca editorial e a minha chance de dizer alguma coisa nesse campo.
JC - Tendo em vista que o próprio movimento feminista tem ganhado maior visibilidade, como você acha que será o impacto do livro em relação às suas obras já publicadas?
MARCIA - Que difícil falar isso. “Como conversar com um fascista” que era um livro que ninguém imaginava que pudesse interessar a tantas pessoas, realmente interessou a muita gente e até hoje. Há um paradoxo aí porque o livro trata de uma questão muito difícil e quanto mais a cultura afunda no autoritarismo, mais urgente um livro como esse se torna. Em relação ao feminismo, acho que é um outro movimento que está em jogo. Há um desejo de feminismo e quando surge um livro as pessoas naturalmente se interessam por ele, então esse livro nem entrou nas livrarias, apenas em algumas, e já teve uma segunda tiragem porque havia muita procura. Esse livro, quando eu escrevi, eu escrevi em um tom de crônica. Eu queria que fosse um livro muito sincero, que trouxesse as preocupações que eu tenho e eu sei que muitas pessoas têm, mas que fosse um livro também que desmistificasse certos clichês e certos preconceitos. E que pudesse mostrar pras pessoas como um feminismo é uma potencia em termos de transformação da sociedade. Se a gente tem hoje em dia uma teoria de transformação da sociedade, pra mim ela é um feminismo.
JC - E por que “Feminismo em comum”? Existe algum feminismo que não é “em comum”?
MARCIA - Quando eu escrevi o “Feminismo em comum” eu estava me reportando a uma ideia de filosofia que eu publiquei há alguns anos atrás que foi exposta no livro “Filosofia em comum”. Nessa ideia, eu defendia que a gente não faz filosofia para as pessoas, mas com as pessoas e, portanto, precisamos ultra valorizar o diálogo, a presença das diferenças. Agora, eu transportei essa ideia para pensar o feminismo como uma forma filosófica. Então, o livro vem propor o feminismo como um campo de diálogo. Pra produzir esse espaço dialógico, é preciso ter ciência das diferenças, e eu sustento nesse livro que o dissenso, que é típico do feminismo, significa maturidade política. Eu considero que é importantíssimo todo gesto feminista, portanto nós não podemos fazer um feminismo hierarquizante, ou de viés autoritário, que mede o outro como sendo menor ou pior.
JC - No livro, você traz experiências das mulheres na sua família que não tiveram contato com o feminismo. Você acredita que a nova geração de pessoas é mais consciente do feminismo ou ainda há espaço para o pensamento conservador?
MARCIA - Acho que é bastante sério isso. Eu quis colocar como dado a história da minha avó que foi uma mulher espancada no interior do Rio Grande do Sul nos anos 30, 40, numa época em que ser mulher, dependendo das condições, era estar marcada para morrer. Como hoje ainda continua acontecendo. Então, a história da minha avó não é uma história do passado, é uma história do tempo presente ainda. Eu quis trazer esses exemplos para que as pessoas pudessem reconhecer o caráter material, concreto, palpável e histórico das experiências de dor e sofrimento das mulheres nos diversos campos, e pensassem, a partir daí, que o feminismo tem uma contribuição a dar. Hoje nós temos uma abertura para a luta, a gente ta vivendo uma nova onda feminista e isso tende a ser muito bom.
JC - Como foi seu primeiro contato com o feminismo? Você sentiu receio em se afirmar feminista pela primeira vez?
MARCIA - Quando eu era adolescente isso nem existia. Eu era uma menina muito isolada, muito sozinha quando eu estudava na faculdade, não via esses conteúdos. Eu só tive aulas com homens, vivi num mundo muito masculino em que isso não entrava em questão. Você nem percebia que você pudesse estar sendo violentada em alguma esfera simbólica, só a física. Eu também sempre lidei com o mundo masculino de igual pra igual, então eu sei ser homem. Acho que sei até mais ser homem do que ser mulher, no meu caso específico. Mas gênero é uma construção simbólica e imaginária. E eu me lembro de ter me afirmado como feminista quando eu fazia um programa de televisão chamado “Saia Justa”, entre 2005 e 2010, em uma época em que era esquisito falar na televisão que era feminista. Eu me lembro muito de ter assumido essa esquisitice em função dos discursos misóginos que eu ouvia ao redor. Nesse momento, eu não me assumi feminista antes de reconhecer as condições concretas históricas nas quais eu estava inserida, porque, até então, vivendo num mundo de homens, eu não precisei nunca dizer que eu era feminista.
JC - No livro você fala muito da questão da identidade. E hoje em dia, a gente vê na mídia uma valorização da pluralidade de identidades, corpos, etnias. Qual sua opinião sobre isso?
MARCIA - No meu ponto de vista, sempre é interessante a gente analisar historicamente. Então, a auto-afirmarão das identidades hoje é uma reação à grande máquina identitária que é o patriarcado. O patriarcado marca mulheres, marca os corpos, marca os corpos lésbicos, homossexuais, trans. Ao mesmo tempo, as identidades não podem ser lidas de forma essencialista, então eu, por exemplo, gosto de me afirmar feminista. Pessoalmente, não gosto de me dizer mulher, porque não me reconheço nessa hétero-marcação, prefiro ser feminista. E há mulheres que preferem ser mulheres, há pessoas que preferem ser lésbicas e não mulheres.
JC - Com relação ao tema do gênero, no seu livro você diz que a verdadeira ideologia de gênero sempre foi o patriarcado. Como você vê essa denominação da forma como ela tem sido usada por alguns grupos conservadores hoje em dia?
MARCIA - É um uso perverso que os sujeitos covardes e violentos do patriarcado fazem do termo ‘gênero’. O patriarcado é uma ideologia. O feminismo é a crítica e desconstrução dessa ideologia. O termo‘gênero’ é um termo que vem sendo usado desde os anos 70, mas foi deturpado por esses ideólogos de gêneros, que são os pastores neofundamentalistas. Pesquisadores, professores, feministas não são ideólogos de gênero nem praticam ideologia de gênero. Eles praticam a crítica do gênero, a crítica da ideologia de gênero dos neofundamentalistas, carregados de “má fé”.
JC - Você acha que as redes sociais estão contribuindo pra disseminação do discurso fascista?
MARCIA - As redes sociais são um meio de difusão, as pessoas usam porque está à mão. Não é porque você possa usar que você vá ter responsabilidade em relação a ele. Então, essa responsabilidade ética que é questionadora, que se preocupa com as conseqüências, isso escapa. Há exércitos inteiros de pessoas nas redes, pessoas inclusive pagas, e robôs, mistificando. Não podemos ser ingênuos em achar que a internet é só um espaço de expressão. As redes sociais são também um campo de batalha, muito manipulado.
JC - Você acredita que o fortalecimento do movimento feminista tem levado a uma reação?
MARCIA - É inevitável que com o crescimento de uma frente revolucionária surjam os que operam no seu desmantelamento. Então, de fato, estamos num processo de luta, entre machistas e feministas, entre autoritários e democráticos. A luta deve ser vista de maneira dialética e precisa ser ultrapassada. Então, se a gente pensar na dialética entre o senhor e o escravo, e pensar na dialética feminista, a gente tem hoje a dialética do senhor e da escrava e isso precisa evoluir. Precisamos sair dessa posição de escravas, de seres que vivem na subalternidade. E isso não se dará sem luta. Mas, necessariamente, aquele que está na posição de senhor não deseja sair dessa posição de privilégio. Trata-se, portanto, de compreender como as mulheres vão sair da posição subalterna e atingirem um espaço de direitos assegurados. Num contexto autoritário, isso fica ainda mais difícil. A meu ver, as feministas é que vão continuar, e quem corre risco é a estrutura do sistema patriarcal.
JC - Tem muitos comentários misóginos nas suas redes sociais? Como você lida com isso?
MARCIA - Sempre tem. Por um lado, eu acho bom que o machismo se exponha. Acho bom que ele venha a tona, que as pessoas deixem claro. Por outro lado, isso é dialético também, porque é muito ruim que isso apareça. Muitas vezes aquele que se expressam dessa maneira, depois pretende sustentar ainda essa visão, ao invés de entrar num processo dialógico e desmontar a sua própria posição a partir de uma autocrítica. Então nós estamos numa situação muito perigosa. A meu ver, o feminismo hoje tem que trabalhar também numa esfera didática, com uma paciência didática, que é revolucionária. E nem sempre a gente tem essa paciência porque o feminismo é uma luta muito corajosa em relação a uma covardia muito grande, ignorante e violenta.
JC - Para finalizar, você diz no seu livro que não adianta ser feminista sem lutar pela transformação da sociedade. Nesse sentido, o que é ser feminista e quem pode se afirmar como tal?
MARCIA - Acho que nós podemos sempre dizer que somos feministas no sentido do apoio que nós damos a luta pelos direitos das mulheres. Ao mesmo tempo, é importante que as pessoas que se manifestam como feministas participem ativamente da luta, porque se é um feminismo apenas por simpatia ele também é precário. Então, cabe a cada um que simpatiza com o feminismo, ultrapassar esse momento mais afetivo e produzir uma outra razão, um outro estado de coisas. A meu ver, o feminismo pode nos levar a essa transformação, mas não basta discursar em nome dele. Ainda que não possamos negar a importância desse momento na história. Então a gente tem que cuidar pra não fazer do feminismo uma onda e uma moda, nós temos que trabalhar sua metodologia para a transformação efetiva da sociedade, o que implica a mudança das condições econômico políticas do mundo. Eu entendo que as mulheres são uma classe social, não apenas um gênero, um sexo, mas uma classe social trabalhadora. Se as mulheres se emancipam, a sociedade inteira se modifica radicalmente. Mas essa emancipação tem que ser produzida de maneira consciente, pra que não se torne mais uma onda.