Quadrinhos

Na HQ 'Eles Estão por Aí' Bianca Pinheiro busca emocionar o leitor

Em entrevista ao JC, a quadrinista falou sobre a carreira e o novo quadrinho, feito em parceria com o marido Greg Stella

Luana Nova
Cadastrado por
Luana Nova
Publicado em 17/08/2018 às 15:18
Foto: Reprodução
Em entrevista ao JC, a quadrinista falou sobre a carreira e o novo quadrinho, feito em parceria com o marido Greg Stella - FOTO: Foto: Reprodução
Leitura:

Ao analisar uma obra, geralmente é levado em conta o conjunto da produção do autor. É justamente nesse aspecto que Bianca Pinheiro — recém-indicada ao 30º Troféu HQMix, em cinco categorias — surpreende. A cada HQ lançada, a carioca radicada em Curitiba revela uma nova faceta e prova que a versatilidade é sua marca mais notável.

Após ter lançado Bear, uma série de quadrinhos alto astral e colorida que retrata a jornada de uma menina em busca dos pais ao lado do amigo urso, a quadrinista lançou Dora, uma história mais macabra sobre uma garota que é acusada criminalmente de provocar eventos terríveis ao seu redor.

A priori, Bear foi lançado como webcomic, em 2012. Atualmente, a cada volume — está no terceiro —, recebe uma impressão da editora Nemo. Dora, por sua vez, saiu direto no papel, em 2014, sendo impresso de forma independente. Após dois anos, o projeto foi agraciado com nova edição da editora Mino.

De um quadrinho para outro, a mudança de estilo é abrupta, mas o resultado é impecável da mesma forma. Certamente, os dois projetos foram fundamentais para que a quadrinista conquistasse reconhecimento na cena nacional de quadrinhos autorais.

Apesar das dificuldades de se viver como quadrinista no Brasil, Bianca realizou um sonho impagável: roteirizou e ilustrou uma história da Turma da Mônica, a convite da Mauricio de Sousa Produções (MSP), editora que marcou sua infância e lhe inspirou a criar narrativas quadrinizadas. A Bianca foi incumbida a criação de um enredo delicado sobre família e ela, mais uma vez, soube adaptar o traço e criar uma história incrivelmente sensível.

Mônica – Força, da Graphic MSP, coleção que busca agregar valores mais reflexivos e contemporâneos aos personagens do Bairro do Limoeiro, definitivamente deu a carga de potência e confiança necessária para que a carioca se aventurasse ainda mais pelas tramas. Recentemente, em parceria com Greg Stella, seu marido também quadrinista, autor do fanzine Nas Dobras do Mundo, Bianca lançou Eles Estão por Aí, através da editora Todavia.

Novamente, pegou todos de surpresa e chegou até mesmo a confundir alguns. É dela o desenho que muitos pensavam ser de Gregório, feito com ângulos, planos e perspectivas pouco convencionais.

O NOVO QUADRINHO

Eles Estão por Aí pode não ser muito bem recebido por um “quadrinheiro” de primeira viagem, pois até os mais familiarizados com HQs têm levado certo tempo para processar e digerir o conteúdo do quadrinho: angustiante, assombroso e insólito. Sem dar margem para qualquer tipo de estereótipo, o livro apresenta criaturas inidentificáveis as quais rumam para lugar nenhum e empregam um vocabulário tão trivial quanto existencialista.

Com ações alternadas entre seres distintos (e ainda assim irreconhecíveis), a narrativa — sem começo, meio ou fim delineados — mantém suspense até a última das 216 páginas. Sem desvelar situações e razões, a história pode acabar levando a um ponto de interrogação. A questão é que a certeza da dúvida angustia. Mas, por mais que o caminho não esteja claro, é tomada a ciência de que na verdade houve partida para outro lugar, para fora da zona de conforto.

Ao Jornal do Commercio, Bianca falou sobre a nova HQ e a carreira. Confira a entrevista abaixo:

JORNAL DO COMMERCIO — Muita gente se mostrou angustiada em relação à HQ Eles Estão por Aí nas redes sociais. Algumas pessoas porque acharam o enredo denso, outras porque não entenderam nada. Era isso o que você e Greg pretendiam provocar com o trabalho?
BIANCA PINHEIRO — Acho que a ideia é sempre causar algum tipo de emoção. Alguma sensação. Desconforto, como todas as outras, é uma sensação bem-vinda, uma vez que tira o leitor do estado comum e o obriga a se confrontar com algum tipo de sentimento. A história que só passa pela pessoa, que não deixa uma marca sequer, não é interessante para nós. Imagino que seja a intenção de todo autor, de qualquer coisa que seja, causar alguma emoção em quem entra em contato com sua obra. O que não causa emoção é esquecido rapidamente.

JC — A impressão que o leitor tem é que Eles Estão por Aí é diferente de tudo o que já foi feito...
BIANCA — Isso se dá porque colocamos como protagonistas e agentes da história criaturas que não conseguimos associar muito bem com o que existe na nossa realidade (seja ela ficcional ou não). Eles quase não têm expressões — quer dizer, alguns tem apenas expressões corporais; outros nem isso. Acho que isso mexe com as pessoas. O que são essas coisas? O que elas estão fazendo? Pra onde estão indo? São perguntas que não estão respondidas claramente no livro e isso invariavelmente causa um estranhamento.
Mas veja, é um estranhamento que não se vê totalmente desprovido de um enredo. As pequenas histórias se conectam de uma forma ou outra e é possível, com uma leitura atenta, compreender por cima o que eles estão fazendo por aí; qual é o foco da história de cada um. Acho que, mesmo que a pessoa não absorva por inteiro todos esses detalhes, alguma coisa a mantém lendo o livro até o fim. E isso é bom. Queremos que o livro seja lido até o fim. Só assim ele pode cumprir seu papel como livro.

JC — E como se deu a concepção desses personagens que não sabemos bem o que são?
BIANCA — Os personagens a princípio seriam robôs, porque era o Greg quem faria o gibi inteiro. Foi só quando eu entrei na jogada que eles viraram outras coisas. A ideia era mesmo que eles não se parecessem com nada muito claro (cada um os vê de uma forma, usando do que conhece do mundo para tentar traduzi-los, é muito legal). O único direcionamento que eu tinha na hora de fazer os concepts deles era que, da dupla principal, um seria “grande” e o outro “pequeno”. O grande tinha que ter pelo menos uma espécie de braço e alguma espécie de pernas, porque só o menor andaria se rastejando pelo chão.

JC — Tenho curiosidade sobre o processo de produção da dupla. Há alguma divisão precisa de tarefas?
BIANCA — Como a história é do Greg, a primeira coisa feita foi o texto. Mais precisamente, os diálogos. O Greg sentou e escreveu todos eles, com suas respectivas pausas, para que soubéssemos o andamento da história. Feito isso, sentamos juntos para fazer o storyboard, uma cena de cada vez. Juntos íamos decidindo o ritmo, os enquadramentos e a decupagem de cada página. Feito isso, eu ia para a parte do desenho, que foi feita inteiramente no computador. Uma vez que a cena estava pronta, nos sentávamos juntos novamente para lê-la por inteiro e fazer os últimos ajustes (texto, enquadramento etc). Só depois que o texto foi completamente revisado e corrigido diversas vezes é que eu finalizei escrevendo todo o texto à mão.

JC — Você e o Greg trabalharam juntos na HQ Meu Pai é Um Homem da Montanha e agora estão fazendo a webcomic Bruxas Caçadoras de Nordea Misla. O processo foi o mesmo do Eles Estão por Aí ou se organizaram de forma diferente?
BIANCA — O processo no Meu Pai é Um Homem da Montanha foi menos inteligente. A gente primeiro sentou e fez o storyboard, com base no que deveria ir acontecendo, tendo só uma leve ideia do que poderia ser o texto. Depois disso, eu desenhei ele por completo. Foi só depois disso tudo é que a gente leu o gibi inteiro e ajeitou o texto. E foi complicado, porque às vezes queríamos escrever algo que não cabia no quadrinho ou que não se ajeitava na página que não havia sido pensada para ele. Foi um quadrinho mais difícil de acertar.
O Bruxas é diferente de novo, porque nesse a gente primeiro decidiu tudo o que vai acontecer. Então já temos toda a história na cabeça, do começo ao fim. Eu então sento e escrevo um capítulo e o Greg vem depois e ajeita todo o texto. Só quando essa parte está pronta é que vamos ao storyboard. A partir daí é tudo igual.

JC — É bem impressionante como todos os seus trabalhos têm conotações e estilos bem distintos uns dos outros. Há algum gênero ou formato que você tenha vontade de se debruçar sobre?
BIANCA — Eu não penso muito em termos de gêneros ou formatos que eu possa ou queira fazer. Costumo pensar numa história como ela vem. Geralmente a partir de alguma cena, ou diálogo, ou uma ideia muito simples e pequena que se transforma em história. Penso, a partir daí, em termos narrativos, em como eu gostaria que a história fosse vista, que sensações gostaria de passar com ela, por aí vai. Duas coisas me limitam atualmente: tempo e desenho; sendo tempo o mais terrível dos obstáculos. Tenho trabalhado para viver de quadrinhos, o que significa que recentemente tem sido necessário terminar livros para os eventos de quadrinhos que acontecem do país. Isso me dá pouca margem de tempo para criar, pensar com calma e construir o projeto e acaba sendo extremamente limitador. Estou com três projetos em espera pela questão tempo.
Desenho, o outro fator limitante, é bem menos terrível. O desafio é descobrir como desenhar o que quero desenhar para cada história que decido contar. Preciso adaptar o estilo a cada uma e isso, naturalmente, leva tempo. Olha aí o problema do tempo outra vez.

JC — Tem algum método em particular que te ajude a adaptar o traço às narrativas? Muda as ferramentas a cada projeto?
BIANCA — Vario a forma de desenhar e finalizar dependendo do que preciso para a narrativa, do que sou capaz de fazer e do tempo que tenho à minha disposição. Trabalhar com o papel é muito mais prazeroso, mas me toma muito mais tempo do que trabalhar no digital. E tem trabalhos, como o Bruxas Caçadoras ou mesmo Bear que eu acho que ficam melhores no digital
mesmo.

JC — Acredito que Bear daria uma ótima animação. Pensa em atuar nesse meio um dia?
BIANCA — Concordo que Bear daria uma ótima animação. Gostaria muito de ver isso acontecer. Mas não penso em eu mesma trabalhar com animação diretamente. Gosto é de fazer quadrinhos.

JC — Você explodiu na internet. Desde então, teve HQs publicadas por editoras, tendo inclusive feito um quadrinho da Mônica, já ganhou prêmio HQMix. Nada disso talvez fosse possível sem a visibilidade proporcionada pelo meio online...
BIANCA — Não acho que o termo “explodiu” seja muito adequado no cenário de quadrinhos e de livros que temos no Brasil. Veja,  Bear é meu livro autoral que mais vendeu. Todos os três. E estamos falando de 10 mil exemplares, 5 mil, por aí vai. É bastante, se considerarmos as vendas “normais” do nosso país. Mas quando paramos para pensar que o Brasil tem quase 200 milhões de habitantes, esse número se torna risível. Vende-se pouco livro no Brasil. Espero que possamos mudar isso, que as novas gerações sejam melhor preparadas para conseguir apreciar o prazer de se ler um bom livro. Reconheço que tive uma boa recepção no cenário de quadrinhos que temos aqui. O reconhecimento que recebi do público é muito legal e é o que resultou em convites (como o das Graphics MSP) e prêmios.

JC — Ainda há discrepância entre o número de mulheres quadrinistas que “estão por aí” e a atenção que elas recebem do mercado editorial e dos prêmios especializados?
BIANCA — Acho que nem sequer temos um mercado direito. O cenário de quadrinhos brasileiro é tão pequeno que não existe distinção entre o amador e o profissional. Não há a profissionalização do autor de histórias em quadrinhos, entende? Mal há uma capacitação do público para poder distinguir o que é profissional do que não é. O que seria o reconhecimento em um cenário tão amador? Tem pouca gente se esforçando para levar o trabalho de se fazer histórias em quadrinhos a sério. E tem pouca gente disposta a levar a sério quem tenta profissionalizar a produção de HQs. Há gente trabalhando muito nessa profissionalização pessoal e recebendo nada de volta. É uma situação bem ingrata.

JC — Além do Bruxas Caçadoras, está trabalhando em algum novo projeto no momento? Previsão para o volume 4 de Bear?
BIANCA — Estou sim trabalhando em múltiplos projetos ao mesmo tempo mas, infelizmente, ainda não posso falar muito deles. Eu nunca sei, afinal de contas, se meus projetos irão até o final. Então quando eu tiver livros prontos, aí poderei dizer que eles existem. Quanto ao Bear 4, acredite, ninguém quer a continuação da série mais do que eu. Bear é meu primeiro filho, eu preciso vê-lo terminado.

Últimas notícias